Formas de se viver o cristianismo hoje

                                Leonardo Boff

Os grandes analistas da história nos confirmaram que já há um século vivemos uma fase nova do espírito de nossa cultura. É a fase da secularização. Com isso se quer significar que o eixo estruturador da sociedade moderna não reside mais no mundo religioso, mas na autonomia das realidades terrestres, no mundo secular. Daí falar-se em secularização. Isso não significa negar Deus, mas apenas que Ele não representa mais o fator de coesão social.Em seu lugar entra a razão, os direitos humanos, o processo de desenvolvimento científico que se traduz numa operação técnica, produtora de bens materiais e o contrato social.

Não cabe aqui discutir os avatares desse processo. Cabe assinalar as transformações que trouxe para o campo religioso, nomeadamente, pelo cristianismo de versão romano-católica.

Havia um descompasso enorme entre os valores da modernidade secularizada (democracia, direitos humanos,liberdade de consciência, diálogo entre as igrejas e religiões etc) e o catolicismo tradicional. Essa desconexão foi superada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) no  qual a Igreja hierárquica procurou acertar o passo que veio sob o nome de aggiornamento, pôr em dia o caminhar da Igreja com o caminhar do mundo moderno.

O transfundo de todos os textos conciliares era o mundo desenvolvido moderno. Na América Latina, nas várias conferências episcopais, se procurou assumir as visões do Vaticano II no contexto do mundo subdesenvolvido, coisa praticamente ausente nos textos conciliares. Daí nasceu uma leitura libertadora, pois se entendeu o subdesenvolvimento como desenvolvimento da pobreza e da miséria, portanto, da opressão que demanda libertação. Aqui se encontram as raízes da Teologia da Libertação que tem por base a prática das Igrejas, empenhadas na superação da pobreza e da miséria, a partir dos valores da prática de Jesus e dos profetas.

O processo de secularização trouxe à luz algumas formas de se viver a mensagem cristã no continente latino-americano e brasileiro.

A primeira é o cristianismo oficial e tradicional. É aquele trazido no contexto da colonização e significou um transplante do cristianismo europeu, vigente até os dias de hoje: com sua doutrina, seus dogmas,seus sacramentos, ritos, santos e santas e festas. A referência maior é a missa e a adesão irrestrita aos ensinamentos oficiais do magistério. Dos mais de 70% de católicos, são apenas 5% que frequentam as missa.

Há uma forma que chamaríamos de um cristianismo cultural, que desde a colonização impregnou a sociedade. As pessoas respiram o cristianismo cujo eixo central são os valores humanísticos de respeito aos direitos humanos,de cuidado dos pobres, mesmo sob a forma de assistencialismo e paternalismo, a aceitação da democracia e a convivência pacífica com outras igrejas ou caminhos espirituais. Não negam o valor da Igreja mas ela não é uma referência existencial. Seja porque não renovou substancialmente sua estrutura clerical-hierárquica, com parca participação dos leigos nas decisões pastorais: sua linguagem doutrinária e seus símbolos herdados do passado.

Há um outro tipo de cristianismo de compromisso. Trata-se de pessoas que, ligadas à Igreja hierárquica, assumem a sua fé em suas expressões sociais e políticas. A referência maior não é a Igreja institucional mas a categoria do Jesus histórico, do Reino de Deus. O Reino não é um espaço físico nem se assemelha aos reis deste mundo. É uma metáfora para uma revolução absoluta que implica novas relações individuais – a conversão -sociais- relação de fraternidade, ecológicas -guardar e cuidar do Jardim do Éden, vale dizer da Terra viva e por fim, uma nova relação religiosa – uma total abertura a Deus, tido como Abba-paizinho querido, cheio de amor e misericórdia. Estes cristãos criaram seus movimentos como a JUC, a JEC, o Movimento Fé e Política, a Economia de Francisco e Clara e outros.O Reino se realiza em todos lugares onde se vivem os valores presentes na tradição de Jesus. O Espírito Santo chega antes do missionário.

Há uma outra forma de se viver o Cristianismo, sem se referir conscientemente a ele, um cristianismo secularizado. Trata-se de pessoas que podem se qualificar como  agnósticas ou como ateias ou simplesmente sem se auto-definir. Mas seguem um caminho ético de centralidade ao amor, de fidelidade à verdade, de respeito a todas as pessoas sem discriminação, preocupação para com os empobrecidos e de cuidado com o Criado e outros valores humanísticos.

Ora, estes valores são os conteúdos da pregação do Jesus histórico. Como se lê nos quatro evangelhos, ele sempre esteve ao lado da vida e daqueles que menos vida têm, curando-os, compadecendo-se deles, tomando partido das mulheres, contra a tradição extremamente patriarcal da época, e convocando para uma abertura irrestrita a todos, chegando a afirmar que “quem vem a mim eu não mandarei embora”(Jo 6,37). No evangelho de São Mateus (25,41-46) que podemos denominar como o evangelho dos ateus se diz que quem “atendeu a um faminto ou sedento, peregrino ou enfermo ou na cadeia….foi a mim que o fizeste”(v.45).

Portando, para viver o cristianismo é preciso viver o amor, ter compaixão e sentir a dor outro. Quem não vive estes valores, por mais piedoso que seja, está longe do Cristo e suas preces não chegam a Deus.

São João em suas epístolas enfatiza:”Deus é amor e quem permanece no amor, permanece em Deus e Deus nele”(1Jo 4,16). Num outro lugar afirma: “quem pratica o bem é de Deus”(3Jo 1,11). Quem tem o amor tem tudo e seu caminho  aponta para a Deus em sua natureza íntima.

Aqui se realiza o que dizia,o grande teólogo alemão que participou da resistência ao nazismo e de um atentado frustrado a Hitler, Dietrich Bonhöffer,enforcado a 29 de abril de 1945: “viver como se Deus não existisse”( etsi Deus non daretur). Mas viver aquele modo de vida no amor e na fidelidade à vida, à semelhança do Justo e Santo de Nazaré.

Talvez hoje a grande maioria no nosso país e no mundo inteiro vive esse tipo de vida que, no dialeto cristão, chamaríamos de um cristianismo anônimo e secularizado. O importante não é o nome mas o tipo de vida que se vive, no amor, na compaixão e na abertura a todos.Estimo que esta foi a vontade originária de Jesus de Nazaré,morto e ressuscitado, pois ele veio antes de tudo a nos ensinar a viver.

Leonardo Boff escreveu O Cristianismo mínimo, Vozes 2011; Saudade de Deus: a força dos pequenos, Vozes 2012; A amorosidade de Deus-Abba e Jesus de Nazaré, Vozes 2023.

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         Un humanismo radical

                      Leonardo Boff*

Uno de los problemas más angustiantes en la cultura mundial hoy en día es la falta de humanidad. No miramos a los lados para ver al otro con sus dolores, búsquedas y necesidades. Consideremos cómo son tratados los emigrantes de Oriente Medio y de África que buscan a Europa por causa de guerras y de gran hambruna. Son rechazados y han hecho del Mediterráneo un verdadero cementerio. El mismo destino trágico sufren los millares de centroamericanos que buscan atravesar las fronteras de Estados Unidos. La mayoría es rechazada, algunos mueren y los niños son puestos en jaulas como si fueran pequeños animales hambrientos. Ni nos referiremos a África que vive desde hace siglos saqueada y todavía crucificada por los europeos. Ellos están yendo a Europa porque antes los europeos estuvieron allí y  ocuparon y expoliaron sus tierras. Los europeos fueron acogidos y ahora los europeos no los quieren acoger.  

Tales antifenómenos muestran cuán ser crueles y sin piedad podemos ser con nuestros prójimos que, en verdad, son nuestros hermanos y hermanas. Tal vez no podamos hacer mucho, pero a veces basta una mirada compasiva, una palabra de consuelo, una sonrisa verdadera, un toque en la piel del otro para comunicarle que somos hermanos y hermanas, expresiones de la misma humanidad. 

No nos tratamos humanamente. De la misma forma agredimos a nuestra Madre Tierra hasta el punto de que el nuevo régimen climático, que superará los 1,5 grados centígrados hacia 2025-2027, puede poner en peligro la biodiversidad y, si el calentamiento aumenta más, afectar al destino de nuestra vida en este planeta.

En este contexto rescatamos lo mejor que el mundo ya gestó: el Hijo del Hombre que se reveló como la presencia humana de Dios entre los humanos: Jesús de Nazaret.

Más que entregarnos verdades, Jesús nos enseñó a vivir los valores que daban cuerpo a su gran sueño, el Reino de Dios. Ese Reino no es como los Reinos de este mundo, rodeados de pompa y gloria, como recientemente vimos en la coronación del rey de Inglaterra. Es un Reino de amor incondicional, de solidaridad ilimitada, de compasión, de servicio a los más humillados y ofendidos y de apertura total a Dios-Abba (“papá”, como él lo llamaba).

Estaba siempre al lado de aquellos que tenían menos vida, los leprosos, los ciegos, los psicológicamente afectados (en el lenguaje de la época, los poseídos del demonio), los enfermos y hasta los muertos, que él resucitó. Él mismo dijo: “vine a traer vida y vida en abundancia” (Jn 10,10). Por haberse opuesto al tipo de religión de la época, ritualista y farisaica, y por haber revelado una nueva cara de  Dios, de infinita misericordia y perdón, amando a todos, “hasta a los ingratos y malos” (Lc 6,36) lo crucificaron fuera de la ciudad, símbolo de rechazo absoluto. Dejó dicho algo extremadamente consolador “si alguien viene a mi no le diré que se vaya” (Jn 6,37), podía ser una adúltera, un hereje y gente de mala fama: a todos acogía y salían consolados.

Él mostró una humanidad radical, hasta el punto de que los apóstoles y discípulos, considerando que “pasó por la vida haciendo el bien” (Mc 7,37) y que había vencido a la muerte por su resurrección, no sabiendo cómo definirlo, acabaron diciendo: humano así como Jesús sólo Dios mismo. Y empezaron a llamarlo Hijo de Dios y Dios en nuestra carne caliente y mortal.  

Su humanismo radical echó raíces profundas en la humanidad. Ese humanismo universal y sin ninguna discriminación podrá devolvernos nuestra humanidad, cubierta de cenizas por el individualismo, por el egoísmo, por la insensibilidad, por la falta de compasión y por la ausencia de cuidado de unos a otros, a nuestra Madre Tierra y a los seres que viven en ella.

Termino con dos testimonios. Uno de Franz Kafka, el gran escritor checo, que dijo: “al oir hablar de Jesús y de su amor cierro los ojos para no caer como en un abismo”. Y otro de Fiódor Dostoiévski que al dejar la Casa de los Muertos (título de su libro), la prisión con trabajos forzados en Siberia, escribió conmovedoramente:

“A veces Dios me envía instantes de paz; en estos instantes, amo y siento que soy amado. En uno de estos momentos compuse para mi mismo un credo, donde todo es claro y sagrado. Este credo es muy sencillo. Dice así: creo que no existe nada más bello, más profundo, más amable, más humano y más perfecto que Cristo; me lo digo a mi mismo con un amor celoso que no existe ni puede existir. Más aún: si alguien me probase que Cristo esta fuera de la verdad y que esta no se encuentra en él, prefiero quedarme con Cristo a quedarme con la verdad”. 

Después de esta profesión de radical humanidad y de fe, no tengo nada más que decir. 

*Leonardo Boff ha escrito Jesucristo el Liberador, Sal Terrae, muchas ediciones.

Traducción de María José Gavito Milano

Un umanesimo radicale

Uno dei problemi, oggigiorno, più strazianti della cultura mondiale è la mancanza di umanità. Non ci guardiamo intorno per vedere l’altro nel suo dolore, nelle sue ricerche e nei suoi bisogni. Consideriamo come sono trattati gli immigrati dal Medio Oriente e dall’Africa che cercano l’Europa a causa di guerre e carestie. Sono respinti e hanno trasformato il Mediterraneo in un vero e proprio cimitero. Lo stesso tragico destino tocca alle migliaia di centroamericani e messicani che tentano di attraversare le frontiere degli Stati Uniti. La maggior parte è respinta e alcuni addirittura morti e i bambini messi in gabbia come se fossero piccoli animali affamati. Né ci riferiremo all’Africa che vive da secoli saccheggiata e crocifissa dagli europei. Loro stanno andando in Europa perché gli europei sono stati là e hanno occupato e depredato la loro terra. Gli europei sono stati accolti e ora non vogliono accogliere loro.

Tali anti-fenomeni mostrano quanto possiamo essere crudeli e spietati verso i nostri vicini che, in realtà, sono nostri fratelli e sorelle. Forse non possiamo fare molto. Ma a volte basta uno sguardo compassionevole, una parola di conforto, un sorriso genuino, un tocco sulla pelle dell’altro per comunicargli che siamo fratelli e sorelle, espressioni della stessa umanità.

Noi non trattiamo umanamente. Allo stesso modo stiamo aggredendo la nostra Madre Terra al punto che il nuovo regime climatico, ultra-passando 1,5 gradi centigradi, intorno al 2025-2027, potrebbe mettere a grave rischio la biodiversità e, se il riscaldamento globale dovesse aumentare ulteriormente, condizionare il destino della nostra vita su questo pianeta.

È in questo contesto che riscattiamo il meglio che il mondo abbia mai gestito: il Figlio dell’Uomo che si è rivelato come presenza umana di Dio tra gli uomini: Gesù di Nazareth.

Più che donarci verità, Lui ci ha insegnato a vivere i valori che incarnavano il suo grande sogno, il Regno di Dio. Questo Regno non è come i regni di questo mondo, circondati da sfarzo e gloria, come abbiamo visto di recente con l’incoronazione del Re d’Inghilterra. È un Regno di amore incondizionato, di solidarietà illimitata, di compassione, di servizio ai più umiliati e offesi e di totale apertura a Dio-Abba (come lo chiamava, “mio caro papà”).

Lui stava sempre dalla parte di chi aveva meno vita, i lebbrosi, i ciechi, i malati psichici (nel linguaggio del tempo, gli indemoniati), i malati e persino i morti che risuscitò. Lui stesso ha detto: “sono venuto a portare la vita e la vita in abbondanza” (Gv 10,10). Per essersi opposto al tipo di religione del tempo, rituale e farisaica e per aver rivelato un volto nuovo di Dio, di infinita misericordia e perdono, amando tutti, “anche gli ingrati e i malvagi” (Lc 6,36) lo crocifissero fuori dalla città, simbolo del rifiuto assoluto.

Se ne andò dicendo una cosa estremamente consolante “se qualcuno viene a me, non lo manderò via” (Gv 6,37), poteva essere un’adultera, un eretico e gente di cattiva fama: tutti accoglieva e uscivano consolati.

Lui ha mostrato un’umanità radicale, al punto che gli apostoli e i discepoli, considerando che egli «ha attraversato la vita facendo del bene» (Mc 7,37) e avendo vinto la morte con la sua risurrezione, non sapendo come definirlo, hanno finito per dire: umano proprio come Gesù solo Dio stesso. E cominciarono a chiamarlo Figlio di Dio e Dio nella nostra carne calda e mortale.

Questo umanesimo radicale ha messo radici profonde nell’umanità. Questo umanesimo universale e senza alcuna discriminazione potrà restituirci la nostra umanità, incenerita dall’individualismo, dall’egoismo, dall’insensibilità, dalla mancanza di compassione e per l’assenza della cura degli uni per gli altri, per e con la nostra Madre Terra e per e con gli esseri che in essa vivono.

Concludo con due testimonianze. Una di Franz Kafka, il grande scrittore ceco, che disse: “quando sento parlare di Gesù e del suo amore, chiudo gli occhi per non cadere in un abismo”. E un altro di Fëdor Dostoevskij che, uscendo dalla Casa dei Morti (titolo del suo libro) dopo il carcere con i lavori forzati in Siberia, scrive commovente:

“A volte Dio mi manda momenti di pace; in questi istanti amo e mi sento amato. È stato in uno di questi momenti che ho composto un credo per me stesso, dove tutto è chiaro e sacro. Questo credo è molto semplice. Eccolo: credo che non ci sia cosa più bella, più profonda, più simpatica, più umana e più perfetta di Cristo; me lo dico a me stesso con un amore geloso che non esiste e non può esistere. Più di questo: se qualcuno mi dimostra che Cristo è fuori della verità e che la verità non si trova in lui, preferirei stare con Cristo piuttosto che stare con la verità”.

Dopo questa professione di radicale umanità e fede non abbiamo più nulla da dire.

Se Lula rifar o meio ambiente, seu governo acaba, por Eliane Brum

Publicamos este artigo que é um grito de alarme sobre as funestas consequências da aprovação da exploração de petróleo na foz do rio Amazonas. Não se trata de vantagens e lucros, mas de colocar a vida do planeta em risco e também, em consequência, da própria humanidade. Eliane Brum é um jornalista especializada em questões ecológicas e internacionalmente reconhecida. Vive agora na região amazônica e vê o desastre que pode significar se este projeto de exploração prosperar. Precisamos junto com 700 organizações nacionais reagir e nos opor renhidamente contra este ataque à vida e contra a negação da melhor ciência. LBoff

26 Maio 2023-IHU

“Entre o fogo cerrado de um Congresso predatório e o fogo amigo de figuras como o líder do governo, Marina Silva e o ministério que comanda sofrem o primeiro grande ataque. Mas não é sobre Marina. É sobre as crianças e nossa vida na casa-planeta“, escreve Eliane Brum, jornalista, escritora, em artigo publicado por SUMAÚMA, 25-05-2023. 

Eis o artigo.

A decisão do Ibama de negar a licença para abrir uma nova frente de exploração de petróleo na Amazônia foi uma vitória. Não uma vitória de Rodrigo Agostinho, presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, que assinou o documento no dia 17 de maio. Não uma vitória de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Não uma vitória dos povos indígenas e das comunidades tradicionais que seriam impactadas se o projeto fosse adiante. Não uma vitória de populações de cidades e regiões que poderiam ser atingidas em caso de um vazamento. Não. Foi uma vitória da melhor ciência e da melhor política. Foi uma vitória da inteligência. Foi uma vitória da vida.

Se essa vitória for apagada pelo ataque feito pelo Congresso a Marina Silva e ao Ministério do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, ao tirar da pasta áreas vitais, acabou. Não acabou para Marina nem para o ministério. Acabou para o governo Lula, que será rearranjado ao modo da extrema direita, com a boiada passando sobre a Amazônia. “O povo brasileiro elegeu o presidente Lula, mas parece que o Congresso quer reeditar o governo Bolsonaro”, disse a ministra. 

Se o ataque do Congresso ao futuro das crianças for bem-sucedido, acabou para todas as pessoas, porque a Amazônia, o Cerrado, o Pantanal, a Mata Atlântica, a Caatinga, o Pampa não sobreviverão a um segundo governo predatório. Se a floresta não sobreviver, acabou até mesmo para os grandes operadores do agronegócio, porque sem chuva não tem produção, não tem exportação, não tem lucro. Não é exagero. É o que mostra a melhor ciência. Entendam: estamos no limite e não será possível esticá-lo.

A decisão sobre o petróleo ajuda a desenhar o que está acontecendo em outras áreas. SUMAÚMA mostrou em fevereiro, em reportagem especial da jornalista Claudia Antunes, que, apesar da troca de governo, a Petrobras estava levando adiante o projeto de explorar petróleo na foz do Amazonas. Desde então, nossa plataforma de jornalismo tem documentado todos os passos desse processo crucial para o meio ambiente. Entre as várias matérias, publicamos com exclusividade que a área técnica do Ibama tinha negado a licença.

É tão óbvio que para quem escreve é constrangedor repetir, mas a obviedade é algo apagado junto com a verdade nas fake news que circulam no Brasil. Aí vai a obviedade: os combustíveis fósseis são – comprovadamente, com 100% de certeza – os principais causadores do aquecimento global, que por sua vez causa a mudança do clima, altera a morfologia do planeta e, por consequência, compromete o futuro próximo da nossa e de outras espécies. A crise climática se manifesta em várias regiões do planeta, tanto por inundações quanto por secas, e já provoca migrações em massa. Mesmo no Brasil, convivemos com eventos extremos que se tornam cada vez mais frequentes, como as catástrofes no litoral norte de São Paulo e no estado do Acre mostraram apenas neste ano.

A segunda obviedade comprovada com 100% de certeza: a floresta amazônica, grande reguladora do clima e o bioma mais biodiverso do planeta, é essencial para enfrentar o aquecimento global, mas a floresta já está muito perto do ponto sem retorno, momento em que perderá sua capacidade de atuar como floresta. Somam-se essas duas obviedades e temos a terceira: abrir uma nova frente de exploração do grande vilão climático na Amazônia é a pior ideia que um governo poderia ter, independentemente se de esquerda ou de direita, porque o colapso climático não vai afetar menos os de direita do que os de esquerda – e vice-versa. É uma ideia tão absurda que fica difícil acreditar que o lucro imediato – ou a próxima eleição – mova as pessoas a destruir o futuro de suas próprias crianças.

E aí temos a quarta obviedade: o governo Lula só terá respeito e, portanto, investimento internacional se proteger a Amazônia. Se o Bolsa Família e a ascensão social de milhões de brasileiros conferiram reconhecimento internacional a Lula no segundo mandato (2007-2010), agora as preocupações do mundo mudaram. E a principal delas é o clima, que já é um dos principais fatores de fome no planeta. A relevância do Brasil – um país com uma democracia esburacada e uma elite política e econômica ao mesmo tempo sinistra na ação e miserável intelectualmente – é ter em seu território 60% da maior floresta tropical do planeta, da qual depende o controle do aquecimento global.

Vale repetir o que SUMAÚMA – Jornalismo do Centro do Mundo contém em seu próprio nome: o Brasil, hoje, é a periferia da Amazônia. “O problema do Brasil é a falta de elite. Elite é quem tem pensamento estratégico. Chico Mendes foi elite deste país. O cacique Raoni é elite deste país. O Guilherme Leal [fundador da Natura], como empresário, é elite deste país”, desabafou Marina Silva, nesta quarta-feira, em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em meio ao furacão ruralista que, segundo ela mesma, faz com que o Ministério do Meio Ambiente esteja “sendo amputado”.

Quando o Ibama tomou a decisão de negar a licença à Petrobras, aqueles que acompanham a política em Brasília comemoraram, mas com uma apreensão: o que vão pedir em troca? Porque, infelizmente, são raros os políticos que pensam no bem do país – e apenas no bem do país. Mais raros ainda em um dos piores parlamentos da história do Brasil, caso do atual, dominado por predadores profissionais. Não demorou. Nesta semana, parlamentares de vários partidos se uniram para desmatar o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e, por consequência, neutralizar Marina Silva, vista como o principal obstáculo entre os predadores e seus objetos de predação, em especial a Amazônia.

O deputado Isnaldo Bulhões, do MDB alagoano, partido que compôs a frente ampla que levou Lula ao poder, foi o relator da medida provisória que “reorganizou” a Esplanada dos Ministérios. Segundo o texto, a Agência Nacional de Águas é transferida para o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, hoje comandado pelo PDT. A pasta também assume o controle da política nacional sobre recursos hídricos. O Cadastro Ambiental Rural é incorporado ao Ministério da Gestão, comandado por Esther Dweck. A gestão dos resíduos sólidos fica com o Ministério das Cidades, outro nas mãos do MDB. E o golpe mais violento: as demarcações são tiradas do Ministério dos Povos Indígenas.

O governo Lula, fragilizado no Congresso, está sem maioria para aprovar seus projetos. Fragilizado, está sujeito às piores chantagens e tudo indica que está se submetendo a elas com menos de cinco meses de mandato. Fragilizado, entre todas as negociações possíveis, parece ter decidido sacrificar o meio ambiente, historicamente o primeiro objeto de troca de vários governos. Só assim para explicar que o ministro Alexandre Padilha (PT) tenha sido capaz de classificar de “positivo” e “equilibrado” um relatório que destrói o Ministério do Meio Ambiente num planeta em colapso climático e com a Amazônia alcançando o ponto sem retorno. Sobre a foz do Amazonas, Padilha afirmou que “a discussão continua” e “o Congresso pode contribuir”. Em resumo: o governo Lula desrespeita a decisão do Ibama, uma reprise do que o Brasil testemunhou no processo de Belo Monte. O mundo sabe no que deu.

Como a história mostra, a esquerda brasileira é, com frequência, sua pior inimiga. Foi o que aconteceu na semana passada quando o senador Randolfe Rodrigues anunciou que estava deixando a Rede Sustentabilidade por discordar da decisão do Ibama de negar a licença à Petrobras para abrir uma nova frente de exploração de petróleo na Amazônia. Antigo desafeto de Marina Silva dentro da Rede, Randolfe aproveitou a ocasião para enfraquecer a ministra num momento crucial, quando ela e o ministério precisavam de todo o apoio possível. No cálculo da decisão está a intenção do senador de disputar o governo do Amapá, o principal impactado pelo projeto da Petrobras. Ao fazer isso, Randolfe se alinhou ao senador Davi Alcolumbre (União Brasil) e àqueles que, no estado, pregam o discurso de que o petróleo vai trazer “prosperidade”. 

Era esperado que, vencido o “mal maior” representado por Jair Bolsonaro, os gatos ficassem menos pardos e as diferenças se tornassem mais evidentes. A ação de Randolfe foi tão abjeta, porém, que surpreendeu até mesmo aqueles que esperavam muito pouco dele. Líder do governo Lula, Randolfe não se satisfez apenas em ampliar a crise de governabilidade. Ele se tornou uma metralhadora giratória de fake news. Disse, por exemplo: “Não tem nenhuma ameaça ambiental. O mesmo risco ambiental que tem nesse lugar tem na exploração da costa fluminense, tem na costa de Sergipe ou na costa do Rio Grande do Norte”.

É assombroso que alguém que um dia tenha se colocado na linha de defesa do meio ambiente fale uma mentira dessas. Descarada – e perigosa. O senador, vale lembrá-lo, tem responsabilidade pública. O risco de acidentes na região, e o desafio de conter um eventual derramamento de petróleo, seria maior do que no litoral do Sudeste, por exemplo, porque as correntes marítimas são três vezes mais fortes e sua dinâmica é pouco estudada. Em 2011, uma sonda da Petrobras que tentava perfurar um poço a 110 quilômetros do Oiapoque foi arrastada e a empresa desistiu do projeto. Além disso, os riscos vão muito além. A bacia da foz do Amazonas é uma região muito rica em peixes por causa da combinação dos sedimentos do rio com o chamado “grande sistema de recifes amazônicos”, que fica a 200 quilômetros da costa. A biodiversidade marinha inclui espécies ameaçadas de extinção, como boto-cinza, boto-vermelho, cachalote, baleia-fin, peixe-boi-marinho, peixe-boi-da-amazônia e tracajá. Sobre o impacto na atmosfera, os cientistas têm estudos que mostram que esse ecossistema atua na captura de carbono, o principal gás causador do efeito estufa. Daí a contradição de explorar um combustível que é hoje o maior responsável pelo superaquecimento do planeta.

Randolfe também disse que o Ibama deveria ter consultado a bancada do Amapá. Mas isso não faz parte do processo de licenciamento, porque a decisão do órgão ambiental deve ser fundamentalmente técnica, baseada na melhor ciência. É essa a atribuição do Ibama no processo de licenciamento, e não pode haver interferência política em decisões técnicas tomadas por quadros especializados. Randolfe Rodrigues sabe de tudo isso, mas preferiu mentir. E ele é o líder do governo, convidado pelo PT para se alojar no partido agora que deixou a Rede de Marina Silva. “É difícil defender o meio ambiente no ambiente da gente. E é isso que eu sempre fiz. Houve um tempo em que não podia andar na metade do meu estado para não ser linchada. Não é ética de conveniência, de circunstância. [E, referindo-se a Randolfe:]‘Aqui eu defendo a sustentabilidade, lá no meu estado não vou defender.’ Essa mancha eu não tenho no meu currículo”, disparou Marina, em sua fala na Câmara de Deputados nesta quarta-feira.

No festival de fake news promovido por políticos do Amapá, até a existência do recife de corais na região foi questionada. Diante desse ataque à opinião pública, que enche de mentiras um debate crucial, perguntamos no Instagram o que os leitores queriam saber sobre o tema. Entre as principais dúvidas estão os impactos da perfuração, se ela vai mesmo gerar riqueza para o povo do Amapá e qual o papel de Randolfe nessa história – aliás, nosso post sobre o senador rifar o meio ambiente despertou 259 comentários, muitos deles de amapaenses decepcionados com sua postura.

Como SUMAÚMA repete insistentemente, estamos numa guerra movida contra a natureza, cujas consequências são o colapso climático e a extinção em massa de espécies. No Brasil, a linha de frente está na Amazônia, no Cerrado e nos demais biomas. O país tem um dos piores congressos da história, que se pauta por decisões baseadas em lucros pessoais ou privados imediatos – e não pelo bem comum. O governo Lula está fragilizado e pode rifar o meio ambiente, mesmo que isso signifique perder o prestígio internacional. É hora de fazer toda a pressão possível para barrar esse ataque contra o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Não apenas porque é o certo, mas porque é nossa principal chance de manter a natureza em pé e garantir um amanhã – que já é hoje. Lutar não é uma opção, mas o único gesto ético possível.

*Com a colaboração de Claudia Antunes e Rafael Moro Martins

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