L.Boff: Covid-19: a Mãe Terra contra-ataca a Humanidade: advertências da pandemia

16 Outubro 2020

“Os escritos de Leonardo Boff são lidos por milhões de pessoas pelo Brasil afora e no mundo inteiro. Boff busca formular seu pensamento dentro da nova cosmologia, que vê o universo em cosmogênese e o ser humano como antropogênese, e como Deus emerge de dentro desse processo de mais de 13,7 bilhões de anos e, daí resulta sua obra: Covid-19: a Mãe Terra contra-ataca a Humanidade: advertências da pandemia“, escreve Eliseu Wisniewski, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade do Paraná (PUCPR) e professor na Faculdade Vicentina (FAVI), Curitiba, Paraná, sobre o livro “Covid-19: a Mãe Terra contra-ataca a Humanidade: advertências da pandemia“. [1] de Leonardo Boff.

Eis o artigo.

Esta obra pretende apresentar reflexões para uma sociedade pós-Covid-19 –  uma civilização biocentrada: “sairemos da epidemia diferentes do que quando entramos. Ela nos obriga a pensar e mais do que pensar; ou seja, incorporar hábitos novos e estabelecer relações mais respeitosas e cuidadosas para com a natureza e também mais amigáveis para com a Casa Comum, a Terra” (p. 7).  

O autor não se atém apenas a comentar sobre o coronavírus, pois, no seu entender, “quase todas as análises do Covid-19 focaram a técnica, a medicina, a vacina salvadora, o isolamento social e o uso de máscaras para nos proteger e não contaminar os outros. Raramente se falou de natureza, pois o vírus veio dela” (p. 144). Boff procura dar um passo a mais na interpretação da pandemia provocada pelo coronavírus. Amparado por dois documentos universais – a Laudato Si’, do Papa Francisco (2015), e a Carta da Terra (2003) –, defende a tese de que a Covid-19 é uma “expressão de autodefesa da Terra viva” (p. 10), ou seja, “é um contra-ataque da Terra viva contra nós por causa de séculos ininterruptos de agressão à sua vida” (p. 9). Justifica: “não podemos analisar o coronavírus isoladamente, como algo em si. Precisamos colocá-lo no seu devido contexto, no qual ele surgiu. Ele veio da natureza, pouca importa se de um morcego ou de outro animal. O fato é que sua origem se encontra na natureza. Sobre ela quase ninguém fala quando se multiplicam as análises dos muitos especialistas nacionais e internacionais” (p. 19).

Longe de ser uma abordagem catastrófica, as páginas desta obra são prospectivas, cheias de lucidez, serenidade, esperança e ajuda a cada um de nós como pessoa, como comunidade, como sociedade, convidados que somos a nos lançarmos na construção de um futuro crescentemente melhor: ”identificar valores, princípios, hábitos, modos de ser, de produzir, de distribuir e de consumir; numa palavra, um outro paradigma civilizacional que se adeque aos ritmos da Terra e da natureza” (p. 10). Assumindo esse tempo de crise como um “tempo de grandes sonhos e utopias, que nos movem na direção do futuro, incorporando o melhor do passado, mas fazendo a própria pegada no chão da vida” (p. 47), a perspectiva apresentada pelo autor é de mudança: “não temos outra alternativa senão mudar. Quem acredita no messianismo salvador da ciência é um iludido: a ciência pode muito, mas não tudo” (p. 18). Mais ainda, ”na questão da intrusão do Covid-19 e assumir urgentemente um outro tipo de relação para com a natureza e a terra, contrário daquele dominante. Vale dizer, faz-se mister um novo paradigma de produzir, distribuir, consumir e conviver na mesma Casa Comum” (p. 19).

A obra está estruturada em quatro partes: 1) o coronavírus: uma arma da Terra contra nós (p. 12-55); 2) o coronavírus nos convida a rezar e a meditar (p. 57-105); 3) lições a tirar da pandemia do coronavírus (p. 107-129); 4) a disputa pelo futuro da Mãe Terra (p. 131-156).

A primeira parte é composta de sete reflexões. Na primeira reflexão, define-se o coronavírus como uma arma da Terra viva, esclarecendo que não adianta repetirmos sempre o mesmo e de forma pior, querendo curar as feridas da terra cobrindo-as com band-aids mas, precisamos de um novo paradigma na defesa contra o coronavírus para a construção de sete pilastras: a) uma visão espiritual do mundo e sua correspondente ética, b) o resgate do coração, do afeto, da empatia e da compaixão, c)  a necessidade de tomar a sério o princípio de cuidado e de precaução, d) o respeito a todo ser, e) a atitude de solidariedade e de cooperação, f) a responsabilidade coletiva, g) a urgência de envidar todos os esforços na consecução de uma biocivilização centrada na vida e na Terra (p. 15-25). A segunda reflexão destaca como a Mãe Terra se autodefende. Sendo a terra um ente vivo que se auto-organiza é urgente que nos conscientizemos sobre a nossa relação com ela e sobre a responsabilidade que temos pelo destino comum da Terra viva-Humanidade. Isso porque terra e humanidade são uma única entidade e o ser humano é a porção da Terra que sente e pensa (p. 26-30). A terceira reflexão mostra como ferimos e maltratamos a Mãe Terra (31-34). Na quarta reflexão, destaca-se que o coronavírus caiu como um meteoro sobre o capitalismo e, por isso, esse é o momento de questionar os mantras-mestres da ordem do capital: a acumulação ilimitada, a competição, o individualismo, a indiferença face à miséria de milhões, a redução do Estado e a exaltação do lema de que a cobiça é boa (p. 35-39). Na quinta reflexão, a atenção é voltado para o pós-pandemia: voltar à normalidade é retroceder, uma vez que o atual sistema põe em risco as bases da vida. Na pandemia, o projeto capitalista foi refutado e, por isso, torna-se necessário inaugurar uma civilização biocentrada cuidadosa, amiga da vida, harmoniosa, perguntando-se que tipo de Terra queremos para o futuro. Na sexta reflexão, a cooperação e a solidariedade são apresentadas como contraponto à normalidade. São apresentados os fundamentos científicos para a cooperação – uma vez que tudo está interligado – e alerta-se para a mudança que se faz necessária: ou mudamos ou conheceremos o destino dos dinossauros (p. 48-51). A sétima reflexão esclarece como Mãe Terra nos fez descobrir, através da pandemia, a nossa verdadeira humanidade e, por isso, cobra para que não voltemos ao que era antes, mas, que sejamos mais humanos (p. 52-55).

As seis (6) reflexões da segunda parte procuram enfatizar o significado do confinamento social e da distância das aglomerações. Aos confinados, a Meditação da Luz é o titulo da primeira reflexão, visto que o confinamento permitiu uma revisão de vida e algum exercício de meditação que o autor chama de “Meditação da Luz: o caminho da simplicidade” (p. 59-63). Na segunda reflexão destaca-se como a celebração da Sexta-Feira Santa ganhou um significado especial no tempo do coronavírus: Jesus continua crucificado nos sofredores do coronavírus (p. 65-69). Neste contexto, a terceira reflexão apresente a Páscoa como a promessa da ressurreição às vítimas do coronavírus: todos os que partiram vítimas do coronavírus estão vivos e ressuscitados em Deus (p. 70-77). A quarta reflexão tece algumas considerações sobre Pentecostes. O Espirito é vida, movimento e transformação, sendo, por isso, invocado por sua ação sanadora e recriadora  (p. 78-82). A quinta reflexão aprofunda o significado do nosso corpo e como devemos cuidar dele, do corpo dos outros, dos pobres e da Terra (p. 83-92). A sexta reflexão apresenta  considerações sobre o cuidado com o espírito. Cuidar do espírito é cuidar do eterno que há em nós (p. 93-105).

A terceira parte apresenta quatro (4) reflexões sobre as lições aprendidas da pandemia do coronavírus. A primeira reflexão (p. 109-112) destaca que não podemos prolongar o passado – “deveríamos ter aprendido que somos parte da natureza, e não os seus senhores e donos. Vigora uma conexão umbilical entre ser humano e natureza. Viemos do mesmo pó cósmico como todos os demais seres e somos o elo consciente da corrente da vida” (p. 109). A segunda reflexão apresenta o mapa para resgatar a vida ameaçada. Uma comunidade de destino para toda a Humanidade, por meio dos valores e princípios da Carta da Terra, articulando a inteligência racional com a cordial (p. 113-118). A terceira reflexão destaca a importância do biorregionalismo como forma viável de concretizar a sustentabilidade (p. 119-122). Na quarta reflexão destacam-se quais são as dez virtudes de uma ética da Mãe Terra pós-coronavírus: a) o cuidado essencial; b) o sentimento de pertença; c) a solidariedade; d) a responsabilidade coletiva; e) a hospitalidade; f) a convivência de todos com todos; g) o respeito incondicional; h)  a justiça social e a igualdade fundamental e todos; i) a busca incansável da paz; j) o cultivo do sentido espiritual da vida (p. 123-129).

A quarta parte aborda  duas questões. Primeira: a transição para uma sociedade biocentrada – esclarece-se em que sentido o coronavírus abalou gravemente o capitalismo neoliberal – e as alternativas políticas para o pós-coronavírus – este nos obrigará a conferir centralidade à natureza e à Terra (p. 133-138). Segunda: por onde começar a transição paradigmática, e quais são os pressupostos para uma transição bem-sucedida: a vulnerabilidade da condição humana exposta a ataques por enfermidades, bactérias e vírus dos ecossistemas; a imprevisibilidade dos acontecimentos naturais e históricos; a interdependência entre os seres, especialmente os seres humanos; a solidariedade como opção consciente; o cuidado essencial para com tudo o que vive e existe, especialmente com os seres humanos. Será decisivo  renovar o contrato natural e articulá-lo com o contrato social – levando em conta o biorregionalismo como ponta da discussão ecológica (p. 139-148).

Como conclusão (p. 149-156), Boff destaca que o “Brasil, não obstante suas contradições histórica e internas, tem um capital ecológico que lhe permitirá fazer um ensaio possível de transição para um outro paradigma de civilização. Por suas riquezas ecológicas, geográficas, geopolíticas e populacionais, tem todas as condições para esse ensaio de uma civilização biocentrada. Esses tempos de confinamento por causa da Covid-19, são propícios pra pensarmos num outro projeto de Brasil” (p. 149).

***

O caminho está aberto… As reflexões de Boff contidas nesta obra estão sintonizadas com o que insistentemente nos pede o Papa Francisco. Em primeiro lugar, uma reflexão teológica consequente com os tempos atuais. Uma teologia que não se perca na disputa acadêmica e que não olhe para a humanidade a partir de um castelo de vidro. Os bons teólogos têm cheiro de povo e de rua e suas reflexões derramam azeite e vinho sobre as feridas da humanidade. O labor teológico de Boff (vem como) é uma confirmação desta realidade. Em segundo lugar, porque num mundo ferido pela pandemia do coronavírus, Francisco, através da encíclica “Fratelli Tutti” (2020), faz um chamado por reformas e mudança de direção propondo um novo paradigma global, em alternativa ao individualismo, capaz de superar a cultura do descarte hoje difundida e silenciosamente crescente.

Se a atual crise do Covid-19, como nos disse o Papa Francisco, expôs nossa fragilidade humana e questionou nossos sistemas econômico, de saúde e social e a necessidade de realizar o direito de cada pessoa aos cuidados básicos de saúde, é nosso dever repensar o futuro da nossa Casa Comum e do nosso projeto comum. Leonardo Boff aponta uma direção e ajuda-nos a alargar nossa consciência ecológica: “o certo é que não podemos voltar ao que era antes, por ser demasiadamente nocivo aos seres humanos e à natureza” (p. 40-41).

Reflexão assertiva. O texto é surpreendente pela lucidez, clareza, seriedade, rigor da análise, liberdade de perscrutar o futuro e por captar o sinal que o coronavírus está nos passando. Um texto oportuno, útil e necessário para repensarmos nosso modo de habitar a Casa Comum, a forma como produzimos, consumimos e nos relacionamos com a natureza.

Ficamos com estas provocações prospectivas trazidas por Boff: “uma coisa é certa: sairemos da epidemia diferentes do que quando entramos. Ela nos obriga a pensar e mais do que pensar; ou seja, incorporar hábitos novos e estabelecer relações mais respeitosas e cuidadosas para com a natureza e também mais amigáveis para com a Casa Comum, a Terra” (p. 7). “A Mãe Terra nos cobra que sejamos mais humanos” (p. 52); ou “mudamos nossa relação com a Terra viva e para com a natureza ou engrossaremos o cortejo daqueles que rumam na direção de sua própria sepultura” (p. 17). Não podemos pretender “restaurar a normalidade anterior, que é altamente danosa” (p. 18). Ou mudamos – e “então poderemos viver e conviver, conviver e irradiar, irradiar e desfrutar da alegre celebração da vida” (p. 25) –, ou “conheceremos o destino dos dinossauros” (p. 51).

Nota

[1] BOFF, Leonardo. Covid-19: a Mãe Terra contra-ataca a Humanidade: advertências da pandemia. Petrópolis: Vozes, 2020, 176 p., 135×2

3 comentários sobre “L.Boff: Covid-19: a Mãe Terra contra-ataca a Humanidade: advertências da pandemia

  1. As reflexões de FREI LEONARDO BOFF SAO EXTRAORDINÁRIA…. REALMENTE E PARA CADA MOMENTO QUE VIVEMOS NESSE PAÍS!

    Curtir

  2. Leonardo Boff é uma luz que arrefece nossas esperanças de um mundo melhor, com mais reflexões, sabedoria, responsabilidade.
    Vivemos dias sombrios que haverão de passar, para abraçarmos nossos irmãos, amigos, nossos amores.

    Curtir

Deixe um comentário