Dra. Padula Anderson e Dr. Hanzelmann: sem o SUS é a barbárie?

Este texto importante, celebrando os 30 anos de existência oficial do Serviço Único de Saúde (SUS) foi elaborado em parceria  de Dra.Maria Inez Padula Anderson  o do  Dr.Ricardo Hanzelmann, ambos da diretoria da Sociedade Brasileiria de Medicina da Família e Comunidade- SBMFC. O contexto é um cenário de desmonte das políticas públicas e perdas de direitos sociais num dos países mais iniquos do mundo.Este texto representa um movimento em prol da reflexão e faz parte dos compromissos que nos levaram à Diretoria da SBMFC.

                                             Sem o SUS é a barbárie?

Há exatos 30 anos, no dia 19 de setembro de 1990, foi regulamentado através da Lei 8080, o Sistema Único de Saúde brasileiro, o SUS. Somente a partir de 1988, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a Saúde é considerada um dever do estado e um direito de Cidadania.

Antes do SUS, a oferta de serviços de saúde para a população brasileira era fragmentada, restrita, sem organicidade, uma vez que as unidades de saúde não se relacionavam e não havia perspectiva de integração. Milhões de brasileiros e brasileiras eram marginalizados e sempre dependentes de ações filantrópicas para ter direito a algum tipo de assistência que, na maioria das vezes, não cobria suas necessidades. Na época pré SUS, ter acesso a serviços de saúde podia ser considerado um privilégio para poucos, praticamente restrito à parcela da população urbana vinculada ao mercado formal de trabalho.

A lógica do sistema, como em outros países sub-desenvolvidos, era baseada no modelo e na oferta de serviços hospitalares, com foco na doença, que também direcionava a formação médica e das demais profissões da área da saúde. Esta lógica é incoerente com o fato de apenas cerca de 10% da população necessitar de cuidados intra-hospitalares durante um ano.

De fato, todas as pessoas necessitam ter acesso a serviços de diferentes tipos num Sistema de Saúde, mais frequentemente aos cuidados primários, que abrange a maioria das necessidades de saúde da população, ao longo de suas vidas. Estes serviços incluem consultas e tratamento para os problemas de saúde mais prevalentes, além de serviços preventivos, como a oferta de vacinas, passando pelas demandas de serviços de saúde mental, curativos, pequenas cirurgias ambulatoriais,  reabilitação física, entre tantos outros. Também necessitam de serviços mais especializados incluindo a hemodiálise e cirurgias. Enfim, a população necessita ter acesso a diferentes tipos de especialistas, mas, majoritariamente, àqueles que prestam cuidados abrangentes e longitudinais, como é o caso dos que atuam na Atenção Primária à Saúde. Mas, na era pré-SUS, mesmo os cuidados primários oferecidos nos Postos de Saúde, Unidades Básicas e Centros Municipais de Saúde eram fragmentados, baseados em linhas programáticas, e voltados apenas para algumas doenças infecciosas.

Ou seja, o SUS, pautado nos princípios da universalidade, integralidade e equidade, desde o seu nascimento, teve que disputar com o modelo hospitalocêntrico e focado nas doenças, como eixo central da prestação de serviços. Este modelo, interessa mais aos setores privados envolvidos na atenção médico-hospitalar, que têm a doença como parte de um ciclo de prestação de serviços lucrativos. Assim, para chegar até o SUS, foi também necessário um forte movimento em prol da luta contra as desigualdades sociais, o que só se tornou possível com a redemocratização do Brasil, após 21 anos da ditadura civil-militar.

Vale chamar a atenção para o fato de o SUS, desde o princípio, sofrer cronicamente com um orçamento inferior ao necessário para o desempenho das suas funções. Ao lado disso, observa-se ainda uma distribuição iníqua de seus recursos em benefício do setor hospitalar e da iniciativa privada, de tal modo que grande parte dos recursos da saúde no país acaba desviada para atender direta e/ou indiretamente os interesses dos prestadores privados de serviço. Isto quer dizer que a maior parte do dinheiro da Saúde que circula no Brasil vai para o setor privado (os planos de saúde): mais de 55% do total de recursos da Saúde se destina a atender 25% da população no setor privado.

Para a Saúde Pública, temos menos da metade do total de recursos em saúde do país, para atender a todos os brasileiros. O orçamento para Saúde Pública brasileira é muito inferior do que boa parte dos chamados países desenvolvidos. São menos de R$ 50 (cinquenta reais) por pessoa por mês; menos de R$ 2 (dois reais por dia)! Países europeus investem 4 a 5 vezes mais em saúde pública. Por outro lado, um plano de saúde privado, que muitas vezes não oferta todos os serviços cobertos pelo SUS pode chegar a R$ 4.000,00 por mês por pessoa, dependendo da idade e do plano. Mesmo considerando os planos mais “econômicos” (que também oferecem serviços muito restritos) os valores médios são muito mais elevados.

Nestes 30 anos, período relativamente curto para um país de dimensões continentais, e apesar de todas as dificuldades, o SUS se tornou um sistema abrangente, capilar, constituído por um conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, bem como pelos serviços conveniados ao SUS.

O SUS é reconhecidamente um dos maiores Sistemas Públicos de Saúde do mundo. Sete em cada dez brasileiros dependem exclusivamente do SUS para receber assistência à saúde, são mais de 150 milhões de pessoas. No entanto, todos os brasileiros e brasileiras utilizam serviços do SUS, mesmo aqueles que têm planos privados de saúde.

O SUS abrange um universo amplo e diverso de serviços de saúde – envolvendo ações de promoção, educação, assistência e recuperação da saúde a prevenção de doenças para brasileiros e brasileiras de todas as idades, cores, etnias, faixas etárias, e nível socioeconômico. Atua no nível dos cuidados primários, secundários e terciários de saúde. Está presente em todo o território nacional. Oferta desde as ações de vigilância sanitária, análise da qualidade da água e dos alimentos que se consome, até a oferta do maior programa mundial de vacinação pública e de transplante de órgãos.

A cada ano, são em média 3, 8 bilhões de procedimentos ambulatoriais, 1,3 bilhões de consultas, cerca de 12 milhões de internações, 2 milhões de partos, 900 milhões de exames, 300 milhões de doses de vacinas e imunológicos distribuídos.

Temos serviços do SUS em todos os 5.570 municípios do país. Neste contexto, vale destacar a Estratégia Saúde da Família como um modelo de organizar a Atenção Primária à Saúde que é mundialmente reconhecida como um modelo exitoso e copiado em diversos países. Sessenta e quatro por cento da população brasileira é coberta por equipes da Estratégia Saúde da Família: são 130 milhões de brasileiros que têm acesso direto e facilitado a unidades de saúde próximas do local onde moram. Também vale destacar outros serviços prestados pelo SUS, e que são do reconhecimento nacional ou internacional, como o programa brasileiro de cuidado às pessoas vivendo com HIV e AIDS, o programa de transplante de órgãos, a maior parte das cirurgias cardíacas e o da oferta e distribuição de todos os tipos de medicamentos para praticamente a totalidade dos problemas de saúde que podem ser apresentados por uma pessoa.

Em plena Pandemia do Coronavírus é o SUS que garante as ações de vigilância epidemiológica e mantém um sistema online de notificação dos casos suspeitos para acesso de todos os serviços de saúde do país, sejam eles públicos ou privados. Essa mesma lógica é usada para que tenhamos um dos maiores sistemas de informação em saúde do mundo, que monitora a evolução de muitas doenças, a exemplo da dengue e do sarampo.

Naturalmente que temos desafios a superar, alguns mantidos ou criados pela própria disputa em relação à hegemonia do sistema, especialmente os relacionados à infra-estrutura das unidades de saúde, à valorização dos profissionais de saúde, o aumento da oferta e acesso a exames, entre outros. Na própria Atenção Primária à Saúde, das mais de 40.000 (quarenta mil) equipes, cerca de 5.000 (cinco mil) têm Médicas e Médicos de Família e Comunidade, os especialistas nesta área.

Em um país onde persiste o racismo estrutural e uma profunda desigualdade gênero, onde os atuais governantes manifestam e incentivam atitudes lgbtfóbicas e misóginas, é o SUS que busca atuar sistematicamente para reduzir as iniquidades, garantindo acesso a serviços de saúde para as populações historicamente negligenciadas. Em meio ao crescente processo de desigualdade social, o SUS importa muito para população negra, para as mulheres, para a população moradora das periferias das grandes cidades, para população LGBTQIA+. O SUS enquanto política de Estado, mesmo tão pouco financiado, vem evitando uma tragédia ainda maior nestes tempos de pandemia e de crise econômica e democrática em nosso país.

Não bastasse já o insuficiente investimento desde sua criação, o SUS vem perdendo recursos desde a Emenda Constitucional (EC) 95/2016, a chamada PEC da Morte que congelou recursos para a saúde e a educação desde 2016, apesar da população estar crescendo e ficando mais empobrecida desde então.

Agora, em 2020, o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) 2021 da União, enviado ao Congresso Nacional, segue a regra PEC da Morte, e pode significar a perda de R$ 35 bilhões em 2021.

Temos que garantir mais recursos para o SUS, mais recursos para a Estratégia Saúde da Família e Atenção Primária à Saúde, que são a porta de entrada do sistema e onde se acolhem e resolvem a grande maioria dos problemas de saúde da população, independentemente da idade, da cor da pele, ou da classe social. Garantir equipes completas com médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde, com apoio de outros profissionais da saúde, é fundamental para termos uma saúde integral. Temos que ampliar as nossas ações de vigilância em saúde. Investir na garantia da oferta de serviços que garantam a integralidade do cuidado em saúde.

Para os empresários da doença, talvez continue interessando que o SUS não progrida, que não tenha financiamento adequado. O desmonte do SUS facilita o crescimento do setor privado que tem a saúde como negócio. Para a grande maioria da população brasileira, podemos dizer que, sim, sem o SUS é a barbárie.

O SUS é um patrimônio do Brasil e do povo brasileiro. Temos que mobilizar a todos para cuidar e nos responsabilizarmos por este patrimônio.

 

 

 

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