Pinherinho resiste apesar do massacre e do terror


No dia 24 de abril deste ano, pela tarde, fui dar apoio à Associação das Mães de Pinheirinho em São José dos Campos, não longe de São Paulo. É do conhecimento geral a brutalidade com a qual as duas polícias, a militar de São Paulo e a civil do município, expulsaram as 1500 famílias que ocupavam há 8 anos um terreno pertencente ao megaespeculador e criminoso financeiro Naji Nahas.

Eram 1800 policiais armados, muitos carros blindados e helicópteros sobrevoando o terreno. Na madrugada de 22 de janeiro invadiram a comunidade, derrubaram casas, atearam fogo em outras, aterrorizaram dezenas de crianças, levaram ao desespero centenas de mães, ameaçando as pessoas com armas pesadas,  sequer permitindo que muitos pudessem levar alguns pertences de suas moradias. Nem cadeirantes, outros entrevados e animais domésticos foram poupados. Foi uma ação de guerra, acobertada pela sentença de uma juíza da cidade e avalizada por um desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Uma comunidade onde reinava solidariedade e sentido de pertença foi totalmente destruída. As pessoas agora vagam por ai, muitos sem onde morar, humilhados e ofendidos em sua dignidade, esperando que o poder público lhes compense com alguma moradia minimamente decente. A grande maioria está desempregada, passa fome  e vive da misericórdia de pessoas solidárias.

Eu e minha companheira Márcia que trabalhou por 20  anos no lixão de Petrópolis e ajudou a criar aí uma comunidade autônoma e que conhece, por experiência, o descaso do poder público para com os pobres, fomos recebidos com música e pétalas de rosas que eram jogados sobre nossas cabeças e aos nossos pés. Pensei, aqui reina alegria e espírito fraterno. Aqui o amor venceu o terror.

Sim o amor triunfou mas a que custo. Quando sentamos em roda na sala e cada uma das pessoas, a maioria mulheres, começou a contar suas tribulações, as violências covardes que sofreram, as humilhações por que estão passando três meses após a tragédia, ficamos estarrecidos. Na medida em que ouvia os depoimentos, crescia em mim a iracúndia sagrada dos profetas Amós e Oséias que lançavam maldições em nome de Deus contra aqueles que oprimem os pobres e acrescentam mais sofrimento aos que já vivem sofrendo.

Curiosamente, as mães não falavam tanto delas. Falavam dos filhos e filhas ainda hoje aterrorizados pelo estrondo das bombas, pelo ruído ensurdecedor dos carros blindados e pelo barulho dos helicópteros fazendo voos rasantes. Mal dormem, ficaram traumatizadas por aquelas figuras sinistras, os policiais, quais agentes do mal que vêem nos programas infantis da televisão.

Sucedia-se a narração da via-sacra de cada uma das mulheres e de uns poucos homens, um deles, um rapaz sobrevivente de uma bala nas costas, com dificuldades de andar e desempregado. Essa via-sacra parece ter mais estações de sofrimento do que aquela do Filho de Deus que  padeceu entre nós. Todos choravam e todos se consolavam, abraçando-se e enxugando-se reciprocamente as lágrimas, como faria a Magna Mater, a grande Mãe com seus filhos e filhas  desconsolados.

Vários voluntários, em sua maioria mulheres,  acompanham e dão apoio à Associação das Mulheres de Pinheirinho. Duas jornalistas, entre outras, merecem ser citadas, pois abandonaram tudo para se dedicarem totalmente a estas mulheres desamparadas: Andrea  Luswarghi e Ana Luisa Lacerda. Seus nomes estão no lugar de outras tantas voluntárias. Elas realizam a missão própria do Messias que é enxugar lágrimas, manter viva a esperança e reforçar os laços de união e de solidariedade entre todos.

Efetivamente, apesar da dor, todas testemunhavam: “confiamos em Deus; temos Deus dentro de nós; Deus nos vai dar força para refazer nossas vidas; vamos continuar lutando por nossos direitos e vamos dar um futuro aos nossos filhos e filhas”.

À noite falei para mais de 700 pessoas, numa grande quadra de esportes  do SESC sobre um tema caro à cidade, orgulhosa de seu progresso: “Como fazer de São José dos Campos, uma cidade dos sonhos”. Logo no início disse sem meias-palavras:”Não posso falar sobre este tema sem mostrar  profundo constrangimento. Como pode uma cidade se propor um sonho se ela permite o massacre e o terror como ocorreu em Pinheirinho? Pinheirinho somos todos nós”. O auditório explodiu em aplausos  pois entendeu a contradição. O sonho era para que exatamente nunca mais ocorresse um Pinheirinho.

Permito-me algumas poucas reflexões. Como teólogo não posso deixar de lembrar dos salmos de perseguição. Ai se diz que os poderosos confabulam entre si, se organizam para tomar mais terras, acumular mais riquezas, dominar mais pessoas. Mas Deus, de lá dos céus, olha para baixo e ri deles, pois são meros homens, não têm poder, apenas arrogância. E Deus desce para ficar do lado das vítimas. Aqui ocorreu algo semelhante. Num youtube, a juíza, cujo nome sequer merece ser citado, diz que se fizeram muitas reuniões com os  policiais, com o poder público, com o judiciário. E as reuniões com os representantes da comunidade? Eles não contam: são jeca-tatus, ignorantes, óleo queimado. Predomina ainda a mentalidade da casa-grande e do senhor de escravos. Bem dizia Joaquim Nabuco e  o repetia com frequência Darcy Ribeiro:”não basta acabar com a escravidão, é preciso acabar com sua obra”. A sua obra é uma mentalidade das elites que têm ainda o escravo e o pobre dentro da cabeça e os consideram como um  joão-ninguém, incapaz de cidadania.

No massacre de Pinheirinho se violaram os princípios básicos de uma ética humanitária: vale mais a vida humana que a propriedade material. A vida funda um direito último, a propriedade um direito secundário e sempre referida à sua função social.

O ser humano deve ser tratado humanamente, especialmente os indefesos e vulneráveis como as crianças, os idosos, os incapacitados e as mães. Aqui tudo foi levado de roldão como se tocassem gado para dentro de um curral.

O mais espantoso não é o que a juíza autorizou fazer mas o que ela disse numa entrevista, registrada num youtube acessível pelo Google:”a polícia desempenhou um serviço admirável, com competência e com honra; é motivo de orgulho para todos nós”. Essa juíza deve ter lido muito Nietzsche que fala da inversão dos valores: onde nós dizemos “massacre” ela diz “serviço admirável”. Onde nós dizemos “terror” ela diz “honra e orgulho para todos nós”. Essa juíza perdeu todo sentido da lei que sempre cái sob o juízo ético do direito. Ela identificou a “lei” que pode ser injusta com o “direito” que a julga.

Por fim, esse massacre e esse terror mostram a qualidade de nossa democracia. Ela foi feita principalmente para as elites oligárquicas que articulam em seu benefício os poderes da política, do judiciário e da polícia, deixando as grandes maiorias à margem do contrato social. Numa sociedade como a nossa, com as desigualdades abissais que a caracterizam, a democracia aparece como farsa, pois toda democracia se funda sobre a igualdade básica de todos os cidadãos e sobre seus direitos garantidos, pouco importa a cor de sua pele, o seu grau de instrução e o nível de seu poder aquisitivo. Isso, em grande parte, não vale ainda para a nossa democracia reducionista e farsesca.

Os responsáveis maiores são o governador do Estado que chefia a Polícia Militar e o prefeito da cidade sob cujo comando está a polícia civil. E ainda a juíza e o desembargador que conferiram caráter legal às ações. Não sei como dormem. Mas suponho que seus travesseiros estão enxarcados das lágrimas das mães desesperadas e cheios dos gritos das crianças aterrorizadas. Basta deixarem vir à tona um pouco de humanidade que seguramente ainda possuem, para ouvirem esses clamores. Estes chegam ao céu. E Deus é aquele que escuta o clamor do oprimido e do injustamente violado. O Deus das mães de Pinheirinho não é o mesmo Deus do Governador, do prefeito, dos juízes e dos policiais. O Deus vivo e verdadeiro ama a vida, cobra a justiça e exige o direito. Este Deus foi negado em Pinheirinho.

Nem tudo vale neste mundo. E Cristo morreu também para confirmar que nem tudo vale, como no caso de Pinheirinho; que o poder deve servir à vida e não à propriedade e que a justiça, o direito e a compaixão devem prevalecer sobre quaisquer outros valores.

 

Leonardo Boff

Teólogo, escritor e presidente de honra do Centro de Defesa dos

Direitos Humanos de Petrópolis e da Comissão da Carta da Terra

15 comentários sobre “Pinherinho resiste apesar do massacre e do terror

  1. Pinheirinho: Eu nunca entendi como o governo federal e a Secretaria dos Direitos Humanos não interferiram. Apenas classificaram como “selvageria” e pronto! Até agora, as coisas permanecem no limbo!

    “Num youtube, a juíza, cujo nome sequer merece ser citado, diz que se fizeram muitas reuniões com os policiais, com o poder público, com o judiciário. E as reuniões com os representantes da comunidade? Eles não contam: são jeca-tatus, ignorantes, óleo queimado. Predomina ainda a mentalidade da casa-grande e do senhor de escravos. Bem dizia Joaquim Nabuco e o repetia com frequência Darcy Ribeiro:”não basta acabar com a escravidão, é preciso acabar com sua obra”. A sua obra é uma mentalidade das elites que têm ainda o escravo e o pobre dentro da cabeça e os consideram como um joão-ninguém, incapaz de cidadania.”

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  2. Apenas duas frase do Boff: 1ª – “Ela (referindo-se à nossa democracia) foi feita principalmente para as elites oligárquicas que articulam em seu benefício os poderes da política, do judiciário e da polícia, deixando as grandes maiorias às margens do contrato social”. 2ª – “O Deus das mães de Pinheirinho não é o mesmo Deus do governador, do prefeito, dos juizes e dos policiais”
    A primeira, se refere à nossa democracia capenga que, desde que me entendo por gente, sempre fez questão de ser assim no Brasil. Aliás, eu diria que este é o nosso maior defeito, o cinismo de chamarmos e considerarmos democracia algo bem excludente e feito só para os poderosos, sempre foi assim e parece que continua a ser assim.
    A segunda, se refere ao Deus que, oficialmente, é exatamente o mesmo para todos, mas que se diferencia enormemente na consciência de cada indivíduo. Eu diria que é a falta do Deus Ecumênico, do Deus igualitário, de todos os homens, povos, raças e poderes.

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  3. Uma das coisas que nos angustia em tudo isso,é a pouca visibilidade na mídia de situações como esta. Seta´que nenhum jornalista que disputa esses prêmios se dignificaria a fazer uma matéria séria e detalhada sobre o assunto? Será que nenhum produtor se interessaria em fazer um documentário??? E nós, o que faremos??

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  4. O sr. Frei, deve incomodar muito os poderosos e gananciosos, que acham que podem tudo: p
    odem acabar com a natureza, podem humilhar, pessoas que não têm culpa de terem herdado como legado a pobreza material, em função da escravidão, que vêm sofrendo, ao longo do tempo, por uma minoria de usurpadores e gananciosos, cuja única preocupação é acumular riquezas, as quais, não os farão diferentes em sua finitude.

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  5. Estive presente na palestra que nos emocionou a todos. Grande Boff, que alem de falar da brutalidade que houve no Pinheirinho ainda deu os celulares das pessoas envolvidas em criar a Associação.Mas que alegria em encontrar tanta gente comprometida. Vamos nos organizar e mudar SJCampos.Abraços,Albertina

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    • Albertina,
      Ajude sim as vítimas. Sabe que na noite de 25 para 26 e na seguinte de 26-27 assaltaram a casa onde fizemos a reunião com as mulheres, vitimas de Pinheirinho. Carregaram os computadores todos e na noite seguinte a mesa de som. Mas as mulhere e as voluntarias não se intimidaram e vao continuar com mais vigor.
      Amanha pode ver no meu blog uma critica a essa continuada brutalidade e o meu apoio.
      Mas mostre tambem a sua solidariedade a elas e às voluntarias.
      Que Deus a ilumine sempre
      lboff

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      • Que tristeza, aonde chegamos.É o desesper do PSDB, só pode ser.Precisamos mudar esta cidade.
        Vamos mais do que nunca apoiar a Associação das Mulhers do Pinheirinho.Abraços e que Deus te abençoe muito,Albertina

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  6. Nós Brasileiros devemos a acabar com esta história que um Partido Político é melhor do que o outro, de que o socialismo é melhor que o capitalismo e vice versa. Devemos sim criar um desenvolvimento de respeito, ecologicamente sustentável. Onde antes de expulsar as pessoas de suas casas, criemos casas sustentáveis para abrigá-las, antes também de criarmos Belo Monte devemos refletir que a Natureza é obra do Criador e não pode ser maltratada. O Criador não tem preferencia por qualquer político de qualquer partido, não é socialista, e nem capitalista, é a razão de toda a Existência. O Partido do Criador tem como filiados todos aqueles que defendem o amor ao próximo.

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    • A verdade é que temos a experiência de vivermos no regime capitalista que tem o lucro acima de tudo. Não me parece que é um regime que se preocupa com o Criador e com as suas criaturas.

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  7. Estive no Morumbi, alojamento dos desalojados do Pinheirinho,único que permitiam a nossa entrada.Levamos eu e uma amiga levamos doações, mas principalmente nosso calor humano àqueles irmãos invisíveis para muitos.São pouquíssimas pessoas que se comovem com a situação.Queria ter ido na palestra,soube que o Frei viria aqui, mas não consegui saber onde.Mas ler este maravilhoso relato, nos faz ter a certeza de que não estamos no caminho errado.Obrigada Frei !

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  8. Estive no Morumbi, alojamento dos desalojados do Pinheirinho,único que permitiam a nossa entrada.Levamos eu e uma amiga levamos doações, mas principalmente nosso calor humano àqueles irmãos invisíveis para muitos.São pouquíssimas pessoas que se comovem com a situação.Mas felizmente existem.Queria ter ido na palestra,soube que o Frei viria aqui, mas não consegui saber onde.Mas ler este maravilhoso relato, nos faz ter a certeza de que não estamos no caminho errado.Estaremos sempre do ladodaquelas mães.Obrigada Frei !

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  9. A resistência do Pinheirinho
    Caro Leonardo Boff
    Finalmente um justo relato de quem sentiu o drama das famílias do Pinheirinho, fato que repercutiu nos quatro cantos do mundo! Quero lembrar que no Amazonas, apesar da sua vastidão territorial, vem acontecendo despejos que favorecem laitifundiários, grileiros e especuladores imobiliários. Como exemplo cito o despejo do Tarumã, onde 270 famílias da Comunidade Frederico Veiga perderam suas casas, plantações e demais pertences e, provocou a vinda a Manaus de Gercino José da Silva Filho, Ouvidor Agrário Nacional, que propôs a desapropriação das terras defendidas a unhas e dentes pela empresa Eletroferro. Torcemos para que o Tarumã-Açu não se transforme em uma nova Pinheirinho!

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