A humanidade, sob o ataque do coronavírus, experimenta muito sofrimento. A intrusão desse vírus que já levou mais de um milhão de pessoas, suscita toda uma gama de interrogações: que significa o fato de ter afetado somente os seres humanos e ter poupado nossos animais de estimação como cãe e gatos e outros? Estar no isolamento social, não poder abraçar e beijar as pessoas queridas e não poder conglomerar-se amigavelmente produz padecimentos de toda ordem e até revolta.
Neste contexto há pessoas, mesmo sem uma inscrição religiosa, que acolhem um Sentido maior da vida e do mundo, lutam pela justiça, pelo direito e pela melhoria mínima de nossa sociedade e até aquelas que creem em Deus se perguntam: qual o sentido deste abatimento planetário? Produziu-se um apagão. Gente de fé pode, inclusive, não crer mais em Deus. Outros, entretanto, encontram na fé um sustentáculo existencial que torna menos pesada esta situação de confinamento e de ausência dos outros ao seu redor. E procuram tirar lições de vida.
Vamos refletir sobre a fé em seu sentido mais comezinho, antes de qualquer confissão religiosa ou de doutrinas e de dogmas, a fé em sua densidade humana.
Há um dado existencial prévio à emergência da fé: a bondade fundamental da vida. Por mais contraditória que se apresente a realidade, por mais absurdo que seja o ataque da Mãe Terra contra humanidade através do Covid-19 vigora em nós a convicção de que vale mais a pena viver do que morrer. Dou um exemplo tirado da vida cotidiana: uma criança acorda na noite, sobressaltada, por um pesadelo ou pela escuridão. Grita pela mãe. E esta num gesto da magna mater toma-a no colo e carinhosamente lhe sussurra: querida, tudo está bem, mamãe está aqui, não tenhas medo. E a criança entre soluços reconquista a confiança e um pouco mais e mais um pouco novamente adormece.
No mundo nem tudo está bem. Mas convenhamos, a mãe não está mentindo à criança. Apesar de todas as contradições, predomina a confiança de que uma ordem maior subjaz e prepassa a realidade. Ela impede que o absurdo predomine. Ela traz sossego à criança e serenidade à mãe.
Crer é dizer “sim e amém” à realidade. O filósofo L. Wittgestein podia dizer em seu Tractarus ligico-philosophicus (n.7):”Crer é afirmar que a vida tem sentido”. Este é o significado originário e bíblico de fé -he’emin ou amen – que equivale a estar seguro e confiante. Daí se deriva o amém:”é isso mesmo”. Ter fé é estar seguro no sentido da vida. Este é um dado antropológico de base: nem pensamos nele, pois estamos sempre dentro dele pois inconscientemente admitimos que vale a pena viver e realizar um propósito.
Crer, no dizer de Pascal, é uma aposta de que a luz vence as trevas, de que a morte não pode aprisionar o sentido da vida e que, no fundo, em tudo deve existir algum sentido secreto e que, por isso, vale a pena continuar neste mundo. Crer não resolve todos os problemas. Como bem disse o ainda Papa Bento XVI na sua encíclica incompleta Lumen Fidei:”a fé não é uma luz que dissipa todas as nossas trevas, mas é uma lâmpada que guia nossos passos e isto basta para o caminho”.
São muitos que se confessam agnósticos e ateus mas afirmam o sentido da vida, se empenham pela justiça social necessária e veem o no amor, na solidariedade e na compaixão os bens maiores do ser humano. Quem não vive tais valores está longe de Deus, embora possam tê-lo frequentemente em seus lábios.
O bispo pastor, poeta e profeta Dom Pedro Casaldáliga recentemente falecido, expressou em pequenos versos onde está Deus: na paz, na justiça e no amor. Referia-se indiretamente àqueles que ameaçavam e matavam camponeses e indígenas e se confessavam cristãos e católicos.
“Onde tu dizes lei
Eu digo Deus.
Onde tu dizes paz, justiça, amor
Eu digo Deus.
Onde tu dizes Deus
Eu digo liberdade, justiça e amor”
Escondido atrás destes valores, paz, justiça e amor, está Deus. Eles são o seu verdadeiro nome.
Simone Weil, a judia francesa que se converteu ao cristianismo mas não se deixou batizar em solidariedade a seus irmãos e irmãs judeus e judias então condenados às câmaras de gás, nos dá uma pista de compreensão: “Se quiseres saber se alguém crê em Deus, não repare como fala de Deus mas como fala do mundo”, se fala na forma do amor,da justiça e da liberdade, está falando de Deus. Quem vive tais valores mergulha naquela Realidade que chamamos Deus e expressa uma fé em Deus.
A fé entendida assim, impõe limites e até condena toda a indiferença face aos sofredores, parentes e amigos de vítimados pelo Covid-19. Pode alguém proclamar “Deus acima de tudo” mas se não tiver compaixão e solidariedade para com com todos eles, esse Deus é um ídolo e ele está longe do Deus vivo e verdadeiro, testemunhado pelas Escrituras judaico-cristãs.
Crer é aceitar que há um outro lado da realidade que não vemos mas que acolhemos como parte de nós e que nos acompanha nas labutas cotidianas. Crer é afirmar que o Invisível é parte do visível. Nós intuímos sua presença e nele vivemos e somos.
Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escreveu entre outros: “Covid-19: a Mãe Terra contra-ataca a humanidade” Vozes 2020 e “Experimentar Deus hoje”, Vozes 2011.