O que significa Bolsonaro no poder: Jessé Souza

Jessé Souza é um dos mais renomados e críticos analistas da sociedade brasileira. Com vasta formação mulltidisciplinar aqui e no estrangeiro está renovando nossa compreensão das classes sociais, bem diferente daquela tradicional. Seu último livro é auto-explicativo: “As elites do atraso: da escravidão à Lava-Jato“(Leya 2018). Nem rir nem chorar mas compreender, sentenciava um filósofo. Para compreender, oferecemos aqui, esta interpretação da crise política, social e econômica do Brasil que ajudará o leitor e a leitora a formar a sua leitura da realidade, sob a qual, todos, de alguma forma estamos sofrendo ou estamos, no mínimo, perplexos. LBoff

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Bolsonaro e sua penetração na banda podre das classes populares foi útil para vencer o PT, mas é tão grotesco, asqueroso e primitivo que governar com ele é literalmente impossível :   Jessé Souza

A eleição de Jair Bolsonaro foi um protesto da população brasileira. Um protesto financiado e produzido pela elite colonizada e sua imprensa venal, mas, ainda assim, um “protesto”. Uma sociedade empobrecida – cheia de desempregados, de miseráveis e violência endêmica, cujas causas, segundo a elite e a grande imprensa que a mantém, é apenas a “corrupção política” – elege o mais nefasto político que os 500 anos de história brasileira já produziu. Segundo a imprensa comprada, a corrupção é, inclusive, culpa do PT e de Lula manipulando a informação e criando uma guerra entre os pobres. Sem compreender o que acontece, a sociedade como um todo é manipulada e passa a agir contra seus melhores interesses.

A única classe social que entra no jogo sabendo o que quer é a elite de proprietários. Para a elite, o que conta é a captura do orçamento público via “dívida pública” e juros extorsivos, e ter o Estado como seu “banco particular” para encher o próprio bolso. A reforma da previdência é apenas a última máscara desta compulsão à repetição. Mas as outras classes sociais, manipuladas pela elite e sua imprensa, também participaram do esquema, sempre “contra” seus melhores interesses.

A classe média real entrou em peso no jogo, como sempre, contra os pobres para mantê-los servis, humilhados e sem chances de concorrer aos privilégios educacionais de que desfruta. Os pobres entraram no jogo parcialmente, o que se revelou decisivo do ponto de vista eleitoral, pela manipulação de sua fragilidade e pela sua divisão proposital entre pobres decentes e pobres “delinquentes”. Esses dois fatores juntos, a guerra social contra os pobres e entre os pobres, elegeram Bolsonaro e sua claque.

Foi um protesto contra o progresso material e moral da sociedade brasileira desde 1988 e que foi aprofundado a partir de 2002. Estava em curso um processo de aprendizado coletivo raro na história da sociedade brasileira. Como ninguém em sã consciência pode ser contra o progresso material e moral de todos, o pretexto construído, para produzir o atraso e mascará-lo como avanço, foi o pretexto, já velho de cem anos, da suposta luta contra a corrupção. Sérgio Moro incorporou esta farsa canalha como ninguém.

A “corrupção política”, como tenho defendido em todas as oportunidades, é a única legitimação da elite brasileira para manipular a sociedade e tornar o Estado seu banco particular. A captura do Estado pelos proprietários, obviamente, é a verdadeira corrupção que, inclusive, a “esquerda” até hoje, ainda sem contradiscurso e sem narrativa própria, parece não ter compreendido.

Agora, eleição ganha e Bolsonaro no poder, começam as brigas intestinas entre interesses muito contraditórios que haviam se unido conjunturalmente na guerra contra os pobres e seus representantes. Bolsonaro é um representante típico da baixa classe média raivosa, cuja face militarizada é a milícia, que teme a proletarização e, portanto, constrói distinções morais contra os pobres tornados “delinquentes” (supostos bandidos, prostitutas, homossexuais, etc.) e seus representantes, os “comunistas”, para legitimar seu ódio e fabricar uma distância segura em relação a eles.

Toda a sexualidade reprimida e todo o ressentimento de classe sem expressão racional cabem nesse vaso. O seu anticomunismo radical e seu anti-intelectualismo significam a sua ambivalente identificação com o opressor, um mecanismo de defesa e uma fantasia que o livra de ser assimilado à classe dos oprimidos. Olavo de Carvalho é o profeta que deu um sentido e uma orientação a essa turma de desvalidos de espírito.

É claro que Bolsonaro é um mero fantoche ocasional das elites brasileira e americana. Quando ele volta de mãos vazias dos Estados Unidos, depois de dar sem qualquer contrapartida o que os americanos nem sequer tinham pedido, a única explicação é que ele estava lá como sujeito privado e não como presidente de um país. Como sujeito privado, é bem possível que ele estivesse pagando, com dinheiro e recursos públicos, os gastos de campanha até hoje secretos e sem explicação. Mas é óbvio que sua campanha foi feita e muito provavelmente financiada pelos mesmos que fizeram e bancaram a campanha de Trump.

O seu discurso de ódio era o único remédio contra a volta do PT ao poder. E como a elite e sua imprensa querem o saque do povo, e para isso se aliam até ao diabo, ou pior, até a Bolsonaro, sua escolha teve este sentido. O ódio, por sua vez, é produzido pela revolta de quem não entende por que fica mais pobre e a única explicação oferecida pela imprensa venal é o eterno “bode expiatório” da corrupção política. Mas a corrupção política era a forma, até então, como se manipulava a falsa moralidade da classe média real. Como se chega com esse discurso manipulador também nas classes baixas? O voto da elite e da classe média no Brasil não ganha eleição nenhuma. Este é um país de pobres.

A questão interessante passa a ser como e por que setores das classes populares passaram a seguir Bolsonaro e permitiram sua eleição. Para quem Bolsonaro fala quando diz suas maluquices e suas agressões grosseiras? Ele fala, antes de tudo, para a baixa classe média iletrada dos setores mais conservadores do público evangélico. Este público que ganha entre dois e cinco salários mínimos é um pobre remediado que odeia o mais pobre e idealiza o rico. O anticomunismo, por exemplo, tem o efeito de irmanar este pobre remediado com o rico, já que é uma oportunidade de se solidarizar com o inimigo de classe que o explora e não com seu vizinho mais pobre com quem não quer ter nada em comum. Isso o faz pensar que ele, em alguma medida, também é rico – ou em vias de ser –, já que pensa como ele.

O anti-intelectualismo também está em casa na baixa classe média. Isso é importante quando queremos saber a quem Bolsonaro fala quando ataca, por exemplo, as universidades e o conhecimento. A relação da baixa classe média com o conhecimento é ambivalente: ela inveja e odeia o conhecimento que não possui, daí o ódio aos intelectuais, à universidade, à sociologia ou à filosofia. Este é o público verdadeiramente cativo de Bolsonaro e sua pregação. É onde ele está em casa, é de onde ele também vem. Obviamente esta classe é indefesa contra a mentira institucionalizada da elite e de sua imprensa. Ela é vítima tanto do ódio de classe contra ela própria, que cria uma raiva que não se compreende de onde vem, e da manipulação de seu medo de se proletarizar. Quando essas duas coisas se juntam, o pobre remediado passa a ser mais pró-rico que o Dória.

A escolha de Sérgio Moro foi uma ponte para cima com a classe média tradicional que também odeia os pobres, inveja os ricos e se imagina moralmente perfeita porque se escandaliza com a corrupção seletiva dos tolos. Mas, apesar de socialmente conservadora, ela não se identifica com a moralidade rígida nos costumes dos bolsonaristas de raiz, que estão mais perto dos pobres. Paulo Guedes, por sua vez, é o lacaio dos ricos que fica com o quinhão destinado a todos aqueles que sujam as mãos de sangue para aumentar a riqueza dos já poderosos.

Os primeiros meses de Bolsonaro mostram que a convivência desses aliados de ocasião não é fácil. A elite não quer o barulho e a baixaria de Bolsonaro e sua claque, que só prejudicam os negócios. Também a classe média tradicional se envergonha crescentemente do “capitão pateta”. Ao mesmo tempo, sem barulho nem baixaria Bolsonaro não existe. Bolsonaro “é” a baixaria. Sérgio Moro, tão tolo, superficial e narcísico como a classe que representa, é queimado em fogo brando, já que o Estado policial que almeja, para matar pobres e controlar seletivamente a política, em favor dos interesses corporativos do aparelho jurídico-policial do Estado, não interessa de verdade nem à elite nem a seus políticos. Sem a mídia a blindá-lo, Sérgio Moro é um fantoche patético em busca de uma voz.

O resumo da ópera mostra a dificuldade de se dominar uma sociedade marginalizando, ainda que em graus variáveis, cerca de 80% dela. Bolsonaro e sua penetração na banda podre das classes populares foi útil para vencer o PT, mas é tão grotesco, asqueroso e primitivo que governar com ele é literalmente impossível. A idiotice dele e de sua claque no governo é literal no sentido da patologia que o termo define. Eles vivem em um mundo à parte, comandado pelo anti-intelectualismo militante, o qual não envolve apenas uma percepção distorcida do mundo. O idiota é também levado a agir segundo pulsões e afetos que não respeitam o controle da realidade externa. Um idiota de verdade no comando da nação é um preço muito alto até para uma elite e uma classe média sem compromisso com a população nem com a sociedade como um todo.  Esse é o dilema do idiota Jair Bolsonaro no poder.

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15 comentários sobre “O que significa Bolsonaro no poder: Jessé Souza

  1. Criada” à imagem e semelhança de Deus “(Gêneses 1,26-27), a humanidade de um modo geral degenerou. Oro por perdão, conversão e santidade!

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  2. Jessé Souza sobressai, em meio a tanta perplexidade atual, como uma mente que brilha e ilumina a mente e o caminho de muitos, como eu, que me sinto como que precisando de fugir desesperadamente de um tsunami governamental, nacional e internacional, mas ao mesmo tempo, sabendo que e preciso resistir e seguir participando com outros e outras, para guardar o essencial para o amanhã que virá. Obrigado Jessé!

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  3. Quando um gentleman, exaure o repertorio da elegancia e começa a tratar de algo com uma linguagem extrema, meio escandalosa é porque ja se extinguiu toda a paciência para suportar tamanha indigência. Mas o raciocínio é este mesmo. Parabens!

    Curtido por 1 pessoa

  4. Os bolsominios foram muito bem adestrados, pelo capitalismo imperialista, só que eles mesmos serão a destruição desse modelo perverso e excludente, gerador de miséria para os povos.

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  5. Republicou isso em Paulosisinno's Bloge comentado:
    Compartilhando mais um excelente artigo publicado na página do Leonardo Boff, com a sua introdução: “O que significa Bolsonaro no poder: Jessé Souza
    09/05/2019″
    Jessé Souza é um dos mais renomados e críticos analistas da sociedade brasileira. Com vasta formação mulltidisciplinar aqui e no estrangeiro, está renovando nossa compreensão das classes sociais, bem diferente daquela tradicional. Seu último livro é auto-explicativo: “As elites do atraso: da escravidão à Lava-Jato“(Leya 2018). Nem rir nem chorar, mas compreender, sentenciava um filósofo. Para compreender, oferecemos aqui, esta interpretação da crise política, social e econômica do Brasil que ajudará o leitor e a leitora a formar a sua leitura da realidade, sob a qual, todos, de alguma forma estamos sofrendo ou estamos, no mínimo, perplexos. [L. Boff]
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    Bolsonaro e sua penetração na banda podre das classes populares foi útil para vencer o PT, mas é tão grotesco, asqueroso e primitivo que governar com ele é literalmente impossível: Jessé Souza”
    (Clique no linque para ler o texto)

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  6. Muito bom artigo mas se repete um pouco e não apresenta as saídas que o próprio Jessé conhece. Mas vale muito a pena ler.

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  7. Realmente! Este texto traduz o modo pelo qual o mais ignorante e consequentemente o mais nefasto político (bolsonaro) chegou ao poder.
    Brilhante Jessé Souza.

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  8. Parabéns pela excelente análise. O preocupante é como ficará a educação após esta campanha de difamação desrespeitosa e mentirosa que têm passado neste governo. É um retrocesso para um país q teria q ter a educação como seu objetivo principal:único e viável meio de atingir o progresso.

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  9. Engraçado que o Brasil vive as margens de um colapso econômico e social e o novo presidente tem somente 5 meses de mandato, e o que dizer dos 20 anos ou mais de uma politica podre dominado pelo PT, PSDB e outros? É desleal essa análise e depois fala-se de respeito. Como tudo no Brasil virou “fobia” podemos militar contra a “Bosonofobia”. Torço para que os intelectuais visitem a realidade da favela e dos morros do nosso pais. Mais como na politica o cinismo faz parte do jogo, então toque o barco!!!

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  10. Que todos sigamos Jesus Cristo como Paulo Apóstolo, Francisco de Assis, Papa Francisco, Leonardo Boff e Outros…

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