Elogio aos afrodescendentes no seu dia 20 de novembro

Há um crescendo na discriminação dos pobres, dos LGBT, dos quilombolas,dos indígenas e especialmente dos negros e negras que compõem mais da metade de nossa população. Neste dia 20 de novembro, dia da consciência negra, é dia da consciência para os brancos a fim de que superem a discriminação de seus irmãos e irmãs, acrescentando-lhe sofrimento sobre sofrimento. É um protesto contra o deputado que quebrou no dia 19/11/19 um quadro de um artista nas paredes do Câmara dos Deputados e contra aquele que quebrou a placa em homenagem à Marielle, assassinada há mais de um ano. É meu gesto de pequena solidariedade a estes irmãos e irmãs que têm o mesmo sangue vermelho que o nosso, o mesmo coração que pulsa, o mesmo desejo de amar e ser amado. Lboff

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A Paixão de Cristo continua pelos séculos afora no corpo dos crucificados. Jesus agonizará até o fim do mundo, enquanto houver um único de seus irmãos e irmãs negros que esteja ainda pendendo de alguma cruz. Foi nesta compreensão que a Igreja Católica, na liturgia da Sexta-Feira Santa, coloca na boca do Cristo estas palavras pungentes que valem hoje aos afrodescendente no Brasil:

”Que te fiz, meu povo eleito? Dize em que te contristei? Que mais podia ter feito, em que foi que te faltei”?

“Eu te fiz sair do Egito, com maná de alimento. Preparei-te bela terra, tu, a cruz para o teu rei”.

Celebrando a abolição da escravatura a 13 de maio, nos damos conta de que ela não foi completada ainda. Há muita discriminação na rua, nas mídias digitais sociais contra os afrodescendentes, atingindo escritores, músicos.políticos/as e até atores e atrizes conhecidos e amados pelo público. Quantos jovens negros são executados pela polícia nos morros de nossas cidades?

A Paixão de Cristo continua na paixão do povo afrodescendente. Falta a segunda abolição, da miséria, da fome, do desemprego e da discriminação.

Ouvem-se ecos de seus lamentos por libertação contra um cativeiro ainda imposto:

“Meu irmão branco,  minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me”!

“Eu te inspirei a música carregada de banzo e o ritmo contagiante. Eu te ensinei como usar o bumbo, a cuíca e o atabaque. Fui eu que te dei os ritmos e a ginga do samba. E tu tomaste do que era meu, fizeste nome e renome, acumulaste dinheiro com tuas composições e nada me devolveste”.

“Eu desci os morros, te mostrei um mundo de sonhos, de uma fraternidade sem barreiras. Eu criei mil fantasias multicores e te preparei a maior festa do mundo: dancei o carnaval para ti. E tu te alegraste e me aplaudiste de pé. Mas logo, logo, me esqueceste, reenviando-me ao morro, à favela, à realidade nua e crua do desemprego, da fome, do preconceito  e da opressão”.

“Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me”!

“Eu te dei em herança o prato do dia-a-dia, o feijão e o arroz. Dos restos que recebia, fiz a feijoada, o vatapá, o efó e o acarajé: a cozinha típica da Bahia. E tu me deixas passar fome. E permites que minhas crianças morressem famintas ou que seus cérebros fossem irremediavelmente afetados, infantilizando-as para sempre”.

“Eu fui arrancado violentamente de minha Mãe África. Conheci o navio-fantasma dos negreiros. Muitos morreram na  viagem e foram jogados aos peixes. Fui feito coisa, “peça”, escravo e escrava. Fui a mãe-preta para teus filhos e filhas. Cultivei os campos, plantei o fumo para o cigarro e a cana para o açúcar. Fiz todos os trabalhos. Ajudei a construir quase tudo o que existe neste país, monumentos, palácios e igrejas coloniais. E tu me chamas de preguiçoso e me prendes por vadiagem. Ao lado da Casa Grande do senhor, me condenaste a viver na senzala. Por causa da cor da minha pele me discriminas e me tratas ainda como se escravo fosse”.

“Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!”

“Eu soube resistir, consegui fugir  do capitão do mato que me caçava como a um animai e fundar quilombos: sociedades fraternais, sem escravos, de gente pobre mas livre, negros, negras, mestiços e até brancos. Eu transmiti, apesar do açoite em minhas costas, a cordialidade e a doçura à alma brasileira. E tu me caçaste como bicho, arrasaste meus quilombos e ainda hoje impedes que a abolição da miséria que escraviza e a discriminação que humilha,  continuem como realidades cotidianas e efetivas”.

“Eu te mostrei o que significa ser templo vivo de Deus. E, por isso, como sentir Deus na pele,  no corpo cheio de axé e celebrá-lo no ritmo, na dança e nas comidas sagradas. E tu reprimiste minhas religiões e rebaixando-as a simples ritos afro-brasileiros ou a simples folclore. Não raro, fizeste da macumba caso de polícia”.

“Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me”!

“Quando com muito esforço e sacrifício consegui ascender um pouco na vida, ganhando um salário suado, comprando minha casinha, educando meus filhos e filhas, cantando o meu samba, torcendo pelo meu time de estimação e podendo tomar no fim de semana uma cervejinha com os amigos, tu dizes que sou um negro de alma branca, diminuindo assim o valor de nossa alma de negros, dignos e trabalhadores. E nos concursos em igual condição quase sempre sou preterido em favor de um branco. Porque sou negro ou negra”.

“E quando se pensaram políticas públicas para reparar a infâmia histórica, permitindo-me o que sempre me negaste: estudar e me formar nas universidades e nas escolas técnicas e assim melhorar minha vida e de minha família, a maioria dos teus grita: é contra a constituição, é uma discriminação, é uma injustiça social. E isso se agravou nos nossos dias atuais, sombrios, cortando ou diminuindo as políticas sociais que nos beneficiavam. Mas esperamos firmemente que a Justiça vai ainda estar do nosso lado e continuar a nos abrir as portas das universidades e das escolas técnicas. Finalmente, ainda assim  somos a maioria nas universidades.

“Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: Que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!””

“Responde-me, por favor”.

“E nós brancos, os que dispomos do ter, do saber e do poder, geralmente calamos, envergonhados e cabisbaixos.

É hora de escutar o lamento destes nossos irmãos e irmãs afrodescendentes, somar forças com eles e construir juntos uma sociedade inclusiva, pluralista, mestiça, morena, negra, fraterna, cordial onde nunca mais haverá, como ainda continua havendo,  pessoas que se atrevem a escravizar outras pessoas. Que não seja tão difícil amar e sentirmo-nos irmãos e irmãs, todos filhos e filhas de Olorum e do Altíssimo.

Oxalá possamos gritar: “escravidão nunca mais”. E enxugando as lágrimas, mas alegres, respondemos às discriminações com amor, com música  com dança e com alegria de viver.

E um dia, que só Deus saberá quando, poderemos dizer, como no Apocalipse,  todos juntos, brancos e afrodescendentes,  sem vingança e sem rancor e cheios de júbilo: “tudo isso passou”. Pois estaremos todos  no reino dos libertos.

Leonardo Boff, texto dedicado à atriz Taís Araújo, afrodescendente, discriminada publicamente e também para Danielle Ferreira, bahiana, militante dos direitos das mulheres afrodescendentes e liderança jovem do PT.

 

 

 

 

4 comentários sobre “Elogio aos afrodescendentes no seu dia 20 de novembro

  1. Que os estudiosos, cientistas, divulguem que o ser humano surgiu na África. É a Mãe de todos nós:peles vermelhas, amarelas, negras, brancas… Tenho visto atualmente muitos casais de branco com negra, e negro com branca. Todos somos uma mistura. Pessoalmente descendo de libanês, português, índio, alemão… FORA A IGNORÂNCIA! Deus é nosso CRIADOR, SALVADOR E SANTIFICADOR! Que Ele nos perdoe, converta e santifique e que TODOS POSSAMOS UNIDOS RETORNAR AO SEU SEIO!

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  2. Republicou isso em Paulosisinno's Bloge comentado:
    Há um crescendo na discriminação dos pobres, dos LGBT, dos quilombolas,dos indígenas e especialmente dos negros e negras que compõem mais da metade de nossa população. Neste dia 20 de novembro, dia da consciência negra, é dia da consciência para os brancos a fim de que superem a discriminação de seus irmãos e irmãs, acrescentando-lhe sofrimento sobre sofrimento. É um protesto contra o deputado que quebrou no dia 19/11/19 um quadro de um artista nas paredes do Câmara dos Deputados e contra aquele que quebrou a placa em homenagem à Marielle, assassinada há mais de um ano. É meu gesto de pequena solidariedade a estes irmãos e irmãs que têm o mesmo sangue vermelho que o nosso, o mesmo coração que pulsa, o mesmo desejo de amar e ser amado. Lboff

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    A Paixão de Cristo continua pelos séculos afora no corpo dos crucificados. Jesus agonizará até o fim do mundo, enquanto houver um único de seus irmãos e irmãs negros que esteja ainda pendendo de alguma cruz. Foi nesta compreensão que a Igreja Católica, na liturgia da Sexta-Feira Santa, coloca na boca do Cristo estas palavras pungentes que valem hoje aos afrodescendente no Brasil:

    ”Que te fiz, meu povo eleito? Dize em que te contristei? Que mais podia ter feito, em que foi que te faltei”?

    “Eu te fiz sair do Egito, com maná de alimento. Preparei-te bela terra, tu, a cruz para o teu rei”.

    Celebrando a abolição da escravatura a 13 de maio, nos damos conta de que ela não foi completada ainda. Há muita discriminação na rua, nas mídias digitais sociais contra os afrodescendentes, atingindo escritores, músicos.políticos/as e até atores e atrizes conhecidos e amados pelo público. Quantos jovens negros são executados pela polícia nos morros de nossas cidades?

    A Paixão de Cristo continua na paixão do povo afrodescendente. Falta a segunda abolição, da miséria, da fome, do desemprego e da discriminação.

    Ouvem-se ecos de seus lamentos por libertação contra um cativeiro ainda imposto:

    “Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me”!

    “Eu te inspirei a música carregada de banzo e o ritmo contagiante. Eu te ensinei como usar o bumbo, a cuíca e o atabaque. Fui eu que te dei os ritmos e a ginga do samba. E tu tomaste do que era meu, fizeste nome e renome, acumulaste dinheiro com tuas composições e nada me devolveste”.

    “Eu desci os morros, te mostrei um mundo de sonhos, de uma fraternidade sem barreiras. Eu criei mil fantasias multicores e te preparei a maior festa do mundo: dancei o carnaval para ti. E tu te alegraste e me aplaudiste de pé. Mas logo, logo, me esqueceste, reenviando-me ao morro, à favela, à realidade nua e crua do desemprego, da fome, do preconceito e da opressão”.

    “Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me”!

    “Eu te dei em herança o prato do dia-a-dia, o feijão e o arroz. Dos restos que recebia, fiz a feijoada, o vatapá, o efó e o acarajé: a cozinha típica da Bahia. E tu me deixas passar fome. E permites que minhas crianças morressem famintas ou que seus cérebros fossem irremediavelmente afetados, infantilizando-as para sempre”.

    “Eu fui arrancado violentamente de minha Mãe África. Conheci o navio-fantasma dos negreiros. Muitos morreram na viagem e foram jogados aos peixes. Fui feito coisa, “peça”, escravo e escrava. Fui a mãe-preta para teus filhos e filhas. Cultivei os campos, plantei o fumo para o cigarro e a cana para o açúcar. Fiz todos os trabalhos. Ajudei a construir quase tudo o que existe neste país, monumentos, palácios e igrejas coloniais. E tu me chamas de preguiçoso e me prendes por vadiagem. Ao lado da Casa Grande do senhor, me condenaste a viver na senzala. Por causa da cor da minha pele me discriminas e me tratas ainda como se escravo fosse”.

    “Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!”

    “Eu soube resistir, consegui fugir do capitão do mato que me caçava como a um animai e fundar quilombos: sociedades fraternais, sem escravos, de gente pobre mas livre, negros, negras, mestiços e até brancos. Eu transmiti, apesar do açoite em minhas costas, a cordialidade e a doçura à alma brasileira. E tu me caçaste como bicho, arrasaste meus quilombos e ainda hoje impedes que a abolição da miséria que escraviza e a discriminação que humilha, continuem como realidades cotidianas e efetivas”.

    “Eu te mostrei o que significa ser templo vivo de Deus. E, por isso, como sentir Deus na pele, no corpo cheio de axé e celebrá-lo no ritmo, na dança e nas comidas sagradas. E tu reprimiste minhas religiões e rebaixando-as a simples ritos afro-brasileiros ou a simples folclore. Não raro, fizeste da macumba caso de polícia”.

    “Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me”!

    “Quando com muito esforço e sacrifício consegui ascender um pouco na vida, ganhando um salário suado, comprando minha casinha, educando meus filhos e filhas, cantando o meu samba, torcendo pelo meu time de estimação e podendo tomar no fim de semana uma cervejinha com os amigos, tu dizes que sou um negro de alma branca, diminuindo assim o valor de nossa alma de negros, dignos e trabalhadores. E nos concursos em igual condição quase sempre sou preterido em favor de um branco. Porque sou negro ou negra”.

    “E quando se pensaram políticas públicas para reparar a infâmia histórica, permitindo-me o que sempre me negaste: estudar e me formar nas universidades e nas escolas técnicas e assim melhorar minha vida e de minha família, a maioria dos teus grita: é contra a constituição, é uma discriminação, é uma injustiça social. E isso se agravou nos nossos dias atuais, sombrios, cortando ou diminuindo as políticas sociais que nos beneficiavam. Mas esperamos firmemente que a Justiça vai ainda estar do nosso lado e continuar a nos abrir as portas das universidades e das escolas técnicas. Finalmente, ainda assim somos a maioria nas universidades.

    “Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: Que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!””

    “Responde-me, por favor”.

    “E nós brancos, os que dispomos do ter, do saber e do poder, geralmente calamos, envergonhados e cabisbaixos.

    É hora de escutar o lamento destes nossos irmãos e irmãs afrodescendentes, somar forças com eles e construir juntos uma sociedade inclusiva, pluralista, mestiça, morena, negra, fraterna, cordial onde nunca mais haverá, como ainda continua havendo, pessoas que se atrevem a escravizar outras pessoas. Que não seja tão difícil amar e sentirmo-nos irmãos e irmãs, todos filhos e filhas de Olorum e do Altíssimo.

    Oxalá possamos gritar: “escravidão nunca mais”. E enxugando as lágrimas, mas alegres, respondemos às discriminações com amor, com música com dança e com alegria de viver.

    E um dia, que só Deus saberá quando, poderemos dizer, como no Apocalipse, todos juntos, brancos e afrodescendentes, sem vingança e sem rancor e cheios de júbilo: “tudo isso passou”. Pois estaremos todos no reino dos libertos.

    Leonardo Boff, texto dedicado à atriz Taís Araújo, afrodescendente, discriminada publicamente e também para Danielle Ferreira, bahiana, militante dos direitos das mulheres afrodescendentes e liderança jovem do PT.

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