Hoje conta mais o banqueiro que o bom Padre Júlio Lancellotti

A cultura dominante, hoje mundializada, se estrutura ao redor da vontade de poder que se traduz por vontade de dominação da natureza, do outro, dos povos e dos mercados. Essa  lógica cria continuamente tensões, conflitos e guerras. E provocou a intrusão do Covid-19 que encontrou num presidente”um Trump dos grotões” que a considerou uma “gripezinha” e assim se dispensou de cuidar do povo, assistindo sem qualquer empatia à morte de mais de 240 mil vítimas, para escândalo nacional e internacional.

Dos 3.400 anos de história  da humanidade,  que podemos datar, diz-nos o historiador Georg Weber, 3.166 foram de guerra. Os restantes 234 não foram certamente de paz mas de preparação para outra guerra.

Praticamente em todos os países as festas nacionais, seus heróis e os monumentos das praças são ligados a feitos de guerra. Os meios de comunicação levam ao paroxismo a magnificação de todo tipo de violência, bem simbolizado no programa noturno de uma das televisões sob o título “Tela Quente”. E para vexame geral nosso presidente defende a tortura dos tempos da ditadura militar e exalta torturadores sanguinários.

Nos vários países, o militar, o banqueiro e o especulador valem mais do que o poeta, o filósofo e o santo. Conta mais o rico empresário da Fiesp do que o pobre homem de Deus, que cuida da população de rua e, só por isso, sempre ameaçado de morte: o padre Júlio Lancellotti. Nos processos de socialização formal e informal, a cultura da violência não cria mediações para uma cultura da paz, do diálogo e da fraternidade universal.

Esta situação faz suscitar sempre de novo a pergunta que, de forma dramática, Albert Einstein colocou a Sigmund Freud nos idos de 1932: é possível superar ou controlar a violência? Freud, realisticamente, responde: “É impossível aos homens controlar diretamente o instinto de morte (thánatos). Pode,entretanto, percorrer vias indiretas. Tudo o que faz surguir laços emotivos entre os seres humanos age contra a guerra. Tudo o que civiliza, trabalha contra a guerra”. Mas conclui com uma forma resignada: “esfaimados pensamos no moinho que tão lentamente mói que poderemos morrer de fome antes de receber a farinha”( Obras completas III:3, 215).

Sem detalhar a questão, diríamos que por detrás da violência funcionam fortes estruturas que rompem os possíveis laços de fraternidade. Se não as controlarmos, se torna verdade o que Thomas Hobbes sustenta em seu Levitã (1561): o ser humano é lobo para o outro ser humano.

 A primeira estrutura é o caos sempre presente no processo cosmogênico e antropogênico. Somos todos filhos e filhas do caos primordial, daquela  imensa explosão silenciosa, o big bang que ocorreu há 13,7 bilhões de anos. A expansão e a evolução do universo constituem  uma forma de criar ordem (cosmos) neste caos e não permitir que seja só caótico mas que seja também generativo. Ele gera novos corpos celestes, galáxias, estrelas e buracos negros. Mesmo assim o caos  e o cosmos (novas ordens) sempre acompanham  evolução do universo. Ele atua também no ser humano, fazendo que seja simultaneamente amoroso e violento, luz e sombra.

Essa estrutura de caos produziu cerca de cinco grandes dizimações em massa de seres vivos, ocorridas há milhões de anos. Na última, há cerca de 67 milhões de anos,  pereceram todos os dinossauros. Possivelmente a própria  inteligência também nos foi dada para limitar  a ação destrutiva do caos e potencializarmos sua ação generativa de novas ordens.

Em segundo lugar, somos herdeiros da cultura patriarcal que instaurou,há mais de dez séculos, a dominação do homem sobre a mulher e criou as instituições assentadas sobre o uso legítimo da violência pelo Estado, mas presente no  exército, na guerra, nas classes, no projeto da tecno-ciência posto a serviço  dos processos de produção que implicam uma  sistemática depredação da natureza e uma desumana injustiça social.

Em terceiro lugar, essa cultura patriarcal usou da repressão, do medo, do terror e da guerra como forma de resolução dos conflitos. Sobre esta vasta base se formou a cultura do capital, explorando a força do trabalho humano e devastando a natureza. Seu objetivo é o lucro e não a vida,  sua lógica é a competição e não a cooperação,o individualismo e não a interdependência entre todos. Sua dinâmica excludente origina desigualdades, injustiças, violências que ceifam milhares e até milhões de vidas humanas. A intrusão do Covid-19 impôs a todos uma pausa nessa voracidade pois tudo teve que parar, a produção e a circulação dos seres humanos, sujeitos ao confinamento social. Limou os dentes do lobo mas não lhe tirou a ferocidade. Os especuladores acumulassem fortunas fantásticas agravando a desigualdade social.

Todas estas forças se articulam estruturalmente para consolidar a cultura da dominação e da violência, atitudes contrárias a qualquer tipo de fraternidade. Elas nos desumanizam a todos, fazendo-nos no dizer da encíclica do Papa Francisco Fratelli tutti, não mais irmãos e irmãs mas apenas sócios ao redor de interesses pessoais ou corporativos (cf.n.12;101). Não basta sermos a favor da paz. Temos que ser contra a guerra e no Brasil denunciar a ausência de um projeto oficial para deter o Covid-19, tornando o seu principal responsável, o chefe da nação “um gendarme da burguesia”, que não cuida das vidas de seu povo e não mostra empatia para com as famílias e pessoas que perderam entes queridos, como se tivesse feito uma lobotomia.

 À essa cultura da violência há que se opor a cultura da paz. Ao mundo dos sócios temos que fazer valer o mundo dos irmãos e das irmãs. Esta é proposta inovadora,um verdadeiro novo  paradigma civilizacional do Papa Francisco na encíclica Fratelli tutti: um modo de habitar a Casa Comum, como frater irmão e irmã, na qual vigora uma fraternidade sem fronteiras entre os humanos e também com os demais seres da natureza da qual é parte, em contraposição ao paradigma da modernidade  assentado sobre  o dominus, o ser humano como senhor e dono da natureza e não parte dela.

Tal proposta é imperativa, porque as forças de destruição já por séculos romperam o contrato natural com a Terra e a natureza e  estão ameaçando, por todas as partes, quebrar o contrato social mínimo pela ascensão da direita e da extrema direita que não respeita as leis e a Constituição criando um Estado pós-democrático e sem lei (R.R. Casara).  É imperativa esta proposta papal porque  o potencial destrutivo, em termos de armas de destruição em massa já montado, mais o aquecimento global podem ameaçar toda a biosfera e impossibilitar a continuidade do projeto humano. Ou limitamos a violência e fazemos prevalecer o projeto da fraternidade universal, do amor social e da  paz perene, como o proclama de forma entre angustiada e esperançada o atual Pontífice, ou conheceremos, no limite, um caminho sem retorno.A decisão cabe à nossa geração.

Leonardo Boff é teólogo e retraduziu do latim medieval a Imitação de Cristo com um acréscimo sobre o Seguimento de Jesus, Vozes 2018.

7 comentários sobre “Hoje conta mais o banqueiro que o bom Padre Júlio Lancellotti

  1. ¡UN DESEO NO CAMBIA NADA… UNA DECISIÓN CAMBIA TODO!
    Quiero ser siervo vuestro por Jesucristo, quiero poner un rostro, para llegar a lo más interior de mis hermanos (as), santuario donde habita Dios, quiero tener una calidad humana y espiritual, que a pesar de ser extranjero, me hago compatriota y estando tan lejos, me hago cercano. Los pobres tenemos potencialidades, y no sólo para engrosar la fuerza de trabajo y reforzar el sistema, sino principalmente para transformarlo en sus mecanismos y en su lógica. La Biblia entera, una experiencia de diversidad, es avalada por Dios y redimida por Jesús, no podemos entender la Biblia si no aceptamos la diversidad. Sí se puede edificar una Iglesia sinodal que debe ser la Iglesia de hoy y de mañana, podemos abrir las puertas de la Iglesia desde dentro para permitirle a Jesús que “SALGA” y vaya hasta las periferias; ser una Iglesia que logra el “ENCUENTRO” con todos, en especial con el pobre. Bendita la crisis que me hizo caer, la caída que me hizo mirar al cielo, el problema que me hizo buscar a Dios. Te ruego que reconozcas a Jesús en aquellos que padecemos. Dios no tiene manos, pero tiene tus manos, y cuenta contigo para transformar el mundo. Es urgente redescubrir la importancia de la corrección fraterna, hecha por amor, sobre todo en este momento en que la vida del varón y la mujer está marcada por un exacerbado individualismo y por un peligroso relativismo ético. ¡NADIE SOLO, NADIE EXCLUIDO!. Evangelizar quiere decir proteger la vida, crear fraternidad en vez de muerte, participar en la Iglesia es ponerse al lado de los otros, para sumar: lo importante es el EVANGELIO, sólo los pobres podemos convertir a los ricos, para entender y asumir este proyecto hace falta mucha conversión del conjunto de la Iglesia. Reformar significa resaltar nuestra relación de servicio, meterse en el paradigma de la misión, para ver todas las demás realidades. Necesitamos una Iglesia en camino, presente en el sufrimiento, porque si no la fuerza liberadora del Evangelio, queda bloqueada por lenguajes y comentarios ajenos a su espíritu, necesitamos una Iglesia más orante, valiente, profética y osada. Hermano mi nombre es Joel, soy de Perú, casado, y continuando con la lista soy un católico pecador más, ¿Será posible contar con tu ayuda? Espero tu respuesta para llevarla a la oración y darte mayores detalles, por favor no me muestres tu silencio e indiferencia, no me prejuzgues, ven a conocerme, te invito a mi humilde hogar, donde serás bien venido y recibido.
    NO BUSQUES A DIOS SOLO EN LOS ALTARES, BÚSCALO TAMBIÉN EN TU PRÓJIMO
    Gracias.

    ________________________________

    Curtir

  2. Na verdade uma parcela da população brasileira, tem uma índole nazi/fascista. Sabemos muito bem que ninguém votou engano, pois tudo que ele faz de ruim contra o povo brasileiro, tais como: facilitar o armamento da população, reduzir investimento em saúde e educação, em ciência de modo geral, reduzir investimento em pesquisa, esvaziar as universidades, enfim tudo isso ele prometeu na campanha eleitoral. Fato é que a sociedade brasileira, mormente os mais abastados, têm uma cultura escravagista/escravocrata e em uma sociedade assim é muito fácil se instalar um governo nazi/fascista.

    Curtir

  3. Olá, mestre Boff!
    Faz um tempinho que não terço comentários dos teus artigos. Hoje, entato, senti que devia.
    O senhor escreve muito bem e com propriedade. Teus textos me prendem e me faz lê-los até o final.
    Como o senhor mostra nesse artigo, é urgente construirmos uma cultura de paz e uma fraternidade universal – “fratelli tuti cordis”. O ódio, a violência, a vingança nos corroi e evidencia o pior de nós. Precisamos investir no amor, na fraternidade, na solidariedade, na empatia para construirmos um mundo novo sem violência, fome, violência, desigualdades e injustiças.
    Obrigado pelos teus brilhantes textos que nos impelem à reflexão e ação!
    Fraterno abraço!

    Curtir

  4. Olá, mestre Boff!
    Faz um tempinho que não terço comentários sobre os teus artigos. Hoje, no entato, senti que devia.
    O senhor escreve muito bem e com propriedade. Teus textos me prendem e me fazem lê-los até o final.
    Como o senhor mostra nesse artigo, é urgente construirmos uma cultura de paz e uma fraternidade universal – “fratelli tuti cordis”. O ódio, a violência, a vingança nos corroi e evidencia o pior de nós. Precisamos investir no amor, na fraternidade, na solidariedade, na empatia para construirmos um mundo novo sem violência, fome, violência, desigualdades e injustiças.
    Obrigado pelos teus brilhantes textos que nos impelem à reflexão e ação!
    Fraterno abraço!

    Curtir

  5. Como vai, professor? Teu texto dialoga perfeitamente com o do Tarso Genro sobre a fome e a barbárie.
    A pulsão de morte agora promove no inconsciente humano um desejo de auotdestruição. Sempre que penso sobre isto, me recordo dos momentos mas profundos de uma depressão crônica que vivi por quase toda a minha vida (acredite, por favor, não é porque eu queira, é doença mesmo) Desde muito jovem tenho ciclos de depressão profunda intercalados com períodos de equilíbrio pouco duradouros.
    A indagação que me faço quando já não tenho mais controle sobre o que falo ou perco as forças para me posicionar corretamente ou me portar diante dos fatos é a seguinte: por que estou falando isto? Por que estou agindo assim?
    É a mais absoluta verdade. É como se meu lado consciente não reconhecesse as palavras ou os gestos como sendo seus. Fico dizendo pra mim mesmo que esta pessoa não sou eu. Mas, por mais que tente agir da maneira como gostaria, não consigo.
    Talvez, tenham descoberto um jeito eficaz de, coletivamente, conduzir as sociedades a tal nível de pressão psicológica, de sofrimento interno, que a aceitação do sofrimento e da morte possa ser de certa maneira, incontrolável. Num certo nível de ansiedade, a gente age por impulso de forma inapelável, mesmo sabendo que tua consciência reprova e critica instantaneamente tal ato.
    Conduzir tal pulsão na mesm direção, sob um efeito de manada, parece ser um estágio mais fácil do que este primeiro, de descontrole sobre nossas atitudes e expressões.
    O problema, acredito, está em reverter este processo e sair da imobilidade e inaptidão incapacitantes geradas por este estado de ânimo. No meu caso, é algo com o qual tive de aprender a lidar. Mas, no âmbito social, caso isto tenha sido deliberadamente promovido, não vejo saída. Tal como no pós-Guerra, criou-se uma geração perdida. E todo sofrimento se arrefecerá quando findar-se o processo deflagrado. Restará às próximas gerações reconstruir a esperança e juntar os cacos que herdarem. Só acho trágico que tenhamos nós – a humanidade – caído na mesma armadilha duas vezes consecutivas.
    Meus respeitos.

    Curtir

Deixe um comentário